Capítulo Três: Negociações

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EU SABIA QUE teria de me livrar de Kalak primeiro. Qualquer esperança que eu tivesse de concluir meu objetivo estava invariavelmente atrelada a isso: nunca teria êxito se continuasse presa ao velho desgraçado. Cadius, é claro, estava receoso por causa disso, mas até ele tinha de reconhecer que eu não duraria muito tempo sob os maus tratos constantes de meu senhor.

Que as deusas me guiassem e me protegessem porque eu estava prestes a arriscar o meu pescoço para dar o primeiro passo certeiro na direção da liberdade.

Assim, dias se passaram, marcados por uma normalidade exasperante, antes que eu tivesse a chance de pôr o meu primeiro plano em prática. Eu estava assustadoramente consciente de que infringiria a lei máxima para escravos, mas também tinha ciência de que nada menos do que isso forçaria Kalak a me vender no mercado. Tinha de ser algo grave.

O fato de que meu senhor era avarento e se recusaria a perder o dinheiro que pagou por mim dava-me segurança o bastante para levar aquela loucura adiante. Cadius continuava a dar voz aos seus próprios temores (bastante justificados, obviamente), por outro lado, e tentou sem sucesso me fazer desistir do meu plano.

Se estivesse enganada pagaria com a vida. Mas as deusas responderam as minhas orações e minha fé fomentava a coragem com a qual eu audaciosamente me enchia. E, por fim, a minha paciência foi recompensada com a brecha perfeita para executar meu plano.

Numa manhã, Leyla não acordou bem. Mesmo pálida e fraca foi forçada a trabalhar na casa e na loja, enquanto eu e Uhri nos dividíamos para executar nossas tarefas e ainda vigiá-la de perto para que não cometesse nenhuma falha imperdoável.

Um instante de distração foi o que bastou para que todos os nossos esforços viessem abaixo. Leyla, enfraquecida e tonta, carregava uma bandeja repleta de finas taças de vidro e cristal para o outro lado da loja quando não conseguiu mais se sustentar e os deixou cair, desabando no chão com tremores violentos.

Assistimos, apavorados, as taças caríssimas escorregarem da bandeja nos seus braços, uma por uma, e se partir no chão com um alarido impossível de ser ignorado. Atraído pela comoção, Kalak desceu as escadas até a loja enquanto Uhri acudia sua mãe.

— O que em nome dos deuses está havendo aqui?! — bradou.

Quando viu as taças estilhaçadas, reduzidas a cacos brilhantes e além de qualquer chance de recuperação, seu rosto enrugado se tornou vermelho vivo e ele puxou o azorrague preso ao cinto da calça para surrar Leyla, avançando contra ela, que mal tivera forças para se levantar ou mesmo para suplicar por misericórdia.

— Senhor, tenha piedade! Minha mãe está passando muito mal — Uhri tentou apelar para qualquer sentimento ínfimo compaixão (não havia nenhum em Kalak), mas o velho o afastou com uma bofetada como se afastasse uma mosca inconveniente.

— Saia da minha frente, moleque inútil!

Ergui-me, desafiadora, quando o braço dele fez menção de bater em Leyla. Abri minha boca e a correia de couro no meu pescoço esquentou, provocando uma ardência incômoda — porém tolerável — na pele. Não parei para pensar nas consequências do que estava prestes a fazer quando murmurei as palavras, eu não tive chance para isso, e elas apenas jorraram de minha boca:

— Ee'neia balahur'mertriath horan (amaldiçoai os injustos. Recompensai-os com o enlace da Morte).

Nysa!, Cadius me repreendeu. Tarde demais.

Uhri me olhou assustado quando o velho Kalak agarrou a própria garganta, ofegando e guinchando como um porco pronto para o abate. Seus joelhos bateram no chão e eu o olhei, deliciada com a visão de seu corpo velho se contorcendo. Não tinha certeza de que era capaz de fazer isso até aquele momento. Envolvi meu pescoço com minha mão. A coleira não era capaz de me conter por completo, o peso dessa revelação me deixou eufórica.

Nysa - A Campeã de AstherOnde as histórias ganham vida. Descobre agora