Capítulo Vinte e Três: Emboscada

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COM DIAS SEPARANDO-ME do início da terceira rodada do torneio, fiz o possível para matar o tempo até que o dia mais esperado chegasse. Assim, na manhã posterior ao banquete no palácio com o príncipe, deixei a mansão de meu senhor para me aventurar pelas ruas do Grande Mercado de Théocras auspiciando encontrar Uhri.

Saí cedo, vestindo um par de calças confortável e uma túnica de linho azul, munida de algum dinheiro dado a mim e muita vontade de explorar as ruas cheias e movimentadas. Era bom que Gorah tivesse aprendido a confiar que eu não cometeria nenhuma besteira, era bom poder desfrutar daquela medida parca de liberdade para vaguear para onde quer que eu quisesse e sentisse vontade.

O dia estava abafado e o sol, intenso. Apertei o passo quando percebi os primeiros olhares e os primeiros murmúrios envolvendo o meu nome. Mas me recusei a permitir que toda aquela atenção me intimidasse. Ao invés disso, apreciei tanto os cochichos quanto os relances assustados ou admirados — por vezes, ambos.

O mercado já estava cheio e barulhento àquela hora, como era esperado. Tentei me misturar junto da multidão e das barracas, mas isso se provou um desafio maior do que eu havia imaginado. Olhos me seguiam a cada passo dado e o modo como eu me destacava também não contribuía. Mesmo assim, a experiência foi no mínimo divertida. De escrava à figura ilustre era um salto e tanto, e eu não negaria que não estivesse apreciando a situação. Infelizmente, Uhri não estava à vista naquele dia e eu desisti de encontrá-lo depois de algum tempo. Pena, tinha muito a compartilhar com ele.

Vaguei pelas ruas labirínticas do mercado mesmo assim, atrás de algum sussurro, algum segredo que pudesse me beneficiar. De olhos e ouvidos atentos, migrei de barraca em barraca e me escondi do sol intenso sob as marquises de muitas lojas. Descobri pouco, entretanto: o povo queixava-se da estiagem prolongada que castigava o sudoeste do reino naquele ano, cochichava a respeito da saúde debilitada do príncipe e, o mais inquietante, havia rumores a respeito de tropas do reino vizinho, Éberus, estarem se agrupando no leste. O povo temia que um possível confronto viesse a cobrar mais de seus suprimentos e que custasse mais de seus filhos. Guardei aquela última informação para mais tarde.

O sol brilhava bem em cima da praça principal do mercado àquela hora do dia. Comprei pães quentes, recheados com algum tipo de grão torrado e uma maçã, e me sentei à fonte para comê-los. Fiz o meu melhor para não dar atenção aos olhares que me seguiam, mas logo me vi prestando mais atenção às pessoas ao meu redor.

Devido ao movimento da praça naquela hora do dia, havia um número sem fim de escravos arrastando seus grilhões pesados à sombra de ricos comerciantes empoados e nobres emplumados. Homens e mulheres, velhos e crianças. Sujos, maltrapilhos e famintos. Há apenas alguns anos, eu estaria entre eles, seria uma deles. Tinha de haver uma forma de mudar suas sortes assim como as deusas mudaram a minha. Sarghan tinha planos, mas não poderia colocá-los em prática até que assumisse o trono e isso não aconteceria enquanto o rei vivesse e não enquanto o seu conselho ambicioso governasse através dele, lucrando com a guerra e com a escravidão de povos derrotados.

De repente, enquanto voltava a mim, surpreendi o olhar obstinado de um garotinho, do outro lado da praça e sob o sol forte, que me observava furtivo — ou ao menos, ele acreditava que o fazia de maneira furtiva.

Era um escravo, vestindo pouco mais do que trapos; magro, pequeno, e de cabeça raspada. Devolvi seu olhar e, por algum motivo, ele me deu as costas e desapareceu entre a multidão. Guardei um dos pães na bolsa e mordi minha maçã, reprimindo um sorriso quando percebi o mesmo menino de antes me observando de um novo ponto, meio escondido sob a marquise de uma loja, mas não tão escondido assim.

Nysa - A Campeã de AstherOnde as histórias ganham vida. Descobre agora