Capítulo Nove: O Tributo da Deusa

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AQUELE ÚLTIMO ANO passou mais depressa do que todos os outros. Talvez isso tivesse relação com a minha ansiedade cada vez mais exasperante, talvez estivesse equivocada e as areias de minha ampulheta tivessem, de fato, se derramado mais rápido, encurtando meu tempo e de todos ao meu redor. Como me negava a acreditar que minhas deusas tivessem se prestado a pregar tal peça, concluí que deveria se tratar de minha impaciência e de mais nada.

Com meu treinamento concluído, de acordo com Gorah, sobrou-me tempo ocioso para traçar de vez a linha que definiria a minha sorte — e para pensar. Eu pensava em coisas que não deveria pensar e revivia outras que evitava a todo custo.

Não voltei a ver Zephir sobrevoando o céu de Théocras desde o dia em que cheguei à mansão, mas não interpretava essa ausência como um sinal de mau agouro ou de que minhas deusas tinham me abandonado à própria sorte. Na verdade estava convencida do contrário e a proximidade da abertura do Torneio Trissolar corroborava isso.

Em uma manhã, fui chamada ao gabinete de meu senhor, encontrando-o debruçado sobre dois imensos pacotes que ocupavam quase toda a sua escrivaninha, um equilibrado sobre o outro. Como estavam muito bem embrulhados não consegui deduzir seus conteúdos, mas minha curiosidade aflorou ainda mais quando me recordei de seu chamado urgente.

— Feche a porta, Nysa.

Fiz como meu senhor pediu e me aproximei com subserviência.

— As inscrições para o torneio começam na próxima semana — anunciou sem mais tardanças.

Meu coração disparou no peito, martelando cada pulsação dolorosamente. Meu senhor se levantou e contornou sua escrivaninha, apoiando uma mão sobre os grandes pacotes que a ocupavam.

— Sendo assim, tomei algumas liberdades. São para você. — E se afastou, convidando-me a me aproximar mais para abri-los.

Fi-lo sem cerimônias, rasgando o papel grosso que envolvia o pacote que estava por cima, como uma criança desembrulhando um presente muito esperado. Aos poucos, vi a forma esférica de um escudo se revelar, tão ricamente decorado que o talento do armeiro que o forjou era indiscutível. Aço cinzento, com gravuras prateadas em alto relevo que seguiam um padrão artístico notável.

Mas o que verdadeiramente chamou minha atenção foi a espada escondida abaixo dele, enterrada numa bainha de couro preto com o encaixe e o chape destacados em prateado. Ao ver que eu segurava a respiração, meu senhor tomou a liberdade de tirá-la do pacote para oferecê-la a mim.

Eu nunca havia visto uma espada bastarda tão bela. O pomo, o cabo e o guarda-mão eram suas únicas partes visíveis, visto que a lâmina ainda estava embainhada, mas eu senti como se a espada, no momento em que a recebi com reverência em minhas mãos, tivesse chamado por mim tanto quanto eu chamei por ela.

— Desembainhe a lâmina.

Gorah me incentivou e eu a segurei devidamente pelo cabo para removê-la da bainha. O aço tiniu em minha mão, uma vibração tão sutil, soou como um canto. Olhei os entalhes gravados ao longo da lâmina, símbolos que apenas eu conseguiria lê-los. Acompanhei com a ponta de um dedo a grafia elegante, de cima para baixo.

— Pedi ao armeiro que gravasse um dos versos de oração mais conhecidos às suas deusas — ele explicou com a sombra de um sorriso. — Sabia que teria mais significado para você se o fizesse.

— Aenenti'ah uldur neehemi'ah. Aehnai uldur ahaia'ur keabed. Eenatia'ai eenatia'ah balar'ar dandurai'mihira. As deusas clamam por liberdade. As deusas clamam pelo sangue dos injustos. Ergue-te, ergue-te contra a injustiça, ó servo leal das deusas — li a inscrição com devoção e, ao término, fitei meu senhor. — Eu nem mesmo sei como agradecê-lo, meu senhor.

Nysa - A Campeã de AstherOnde as histórias ganham vida. Descobre agora