Capítulo Vinte e Quatro: Dívida de Sangue

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SONHEI COM OS JARDINS do palácio real de Astradh.

Nada no mundo se comparava às construções majestosas da capital do reino de Torandhur. O palácio em si era um monumento à opulência e ao exagero. Torres imensas, brancas como marfim, foram edificadas em homenagem às deusas Bashir e Meriath. Havia inúmeros santuários com cúpulas de vidro colorido, altares resplandecentes banhados em ouro e pavilhões tão grandes que se perdiam de vista.

Os jardins do palácio real, no entanto, eram uma visão ainda mais suntuosa. O telhado em forma de abóboda de treliças brancas e douradas permitia a passagem tanto do sol quanto da chuva, tudo sustentado por colunas de mármore rosado sobre as quais trepadeiras cresciam.

Os viveiros de pássaros estavam sempre cheios, sempre ruidosos: pintassilgos, estorninhos-comuns, canários, aves de plumagens exóticas trazidas de diversos cantos do mundo, todas cantavam uma canção em comum — a canção da grandeza e da glória do reino onde eu nasci.

Árvores frondosas disputavam espaço com esculturas de gesso e mármore que retratavam homens e deuses, reis e gigantes convivendo em harmonia. As flores desabrochavam como em nenhum outro lugar, enchendo canteiros e vasos com um arco-íris de cores, delas emanavam perfumes nunca antes sentidos.

E no sonho, os jardins eram exatamente como eu lembrava. Foi num deles que eu me achei, mais uma vez, espiando cautelosamente do meu esconderijo precário, uma coluna envolta em hera. Lancei um olhar parte intrépido, parte desesperado para toda a imensidão do jardim no único intuito de distinguir uma silhueta familiar. Uma joaninha que escalava uma folha agarrada ao alicerce subiu no meu dedo indicador. Agachei-me para depositá-la nas pétalas viçosas de um grande lírio azul que crescia num vaso de gesso ao meu lado. Rezei para não ter feito som algum quando me empertiguei.

As palmas das minhas mãos estavam suadas e a bainha de renda do meu vestido branco estava suja de terra. Otiah me repreenderia por haver abandonado minhas lições de novo, mas eu sabia que a escapada valeria a pena.

Do meu esconderijo, voltei a espiar o jardim. Com alívio, finalmente encontrei a criatura quase celeste que espreitava aquele jardim em particular todas as manhãs. Precisei conter um suspiro de admiração. Ela era tão linda. O sol tênue varava as treliças no teto e incidia sobre os imensos cachos prateados do seu cabelo, tão abundantes na verdade que as pontas sedosas roçavam seus quadris delicados. Movia-se com a graça de uma corça, vestida em sedas e rendas brancas tão puras que quase se fundiam à sua tez da cor do alabastro.

As feições do seu rosto eram tão harmoniosas quanto seria humanamente possível, uma beleza surreal cercada por uma aura de majestade. Olhos profundos como o mar que banhava nossa costa, nariz gracioso, queixo afilado, maçãs altas, sobrancelhas prateadas arqueadas... Eu poderia descrever a sua perfeição por toda a eternidade e ainda assim sentir que não lhe fazia justiça.

Esqueci-me do tempo, esqueci-me do mundo e dos meus deveres. Eu venerava aquela mulher quase tanto quanto venerava as minhas deusas. Por um momento, imaginei abandonar meu esconderijo e ir até ela, o espectro de luz e beleza que atravessava o jardim, mas o medo de fraquejar queimava mais ardorosamente dentro de mim do que toda a minha coragem.

Tudo o que eu queria, algum dia, era poder ser como ela. Ser capaz de despertar admiração e euforia nos corações dos homens e das mulheres com um único olhar feito ela. Ela era perfeita. Essa certeza súbita encheu meu coração de devoção e de terror.

Porque, infelizmente, eu não era como ela.

De repente ela se sentou num banco de pedra, cada gesto seu era tão impecável que eu jamais ousaria chamá-lo de mundano. Seu lugar era, provavelmente, junto às nossas deusas — nos meus sonhos.

Nysa - A Campeã de AstherOnde as histórias ganham vida. Descobre agora