Capítulo Quarenta e Sete: Mahira

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ENTREI NOS APOSENTOS do rei passo por passo, fechei as portas e me virei para a semiescuridão. Uma silhueta delgada se moveu entre as penumbras mais densas, seus passos mal passavam de farfalhares no carpete grosso que revestia todo o piso. Ouvi o tilintar de uma corrente se arrastando pelo chão, assim como os gemidos atormentados de um homem.

— Chegue mais perto, minha criança. Quero olhar para você. — A voz me invitou e eu me peguei indo ao seu encontro, incapaz de resistir à sedução daquele timbre agradável.

Ela se moveu entre as sombras mais uma vez, murmurou palavras antigas e em seguida as chamas de uma dezena de velas em castiçais dourados alumiaram todo o aposento com uma suave luz âmbar. Pisquei, reajustando meus olhos sensíveis à claridade, e tive o primeiro vislumbre de Mahira em pouco mais de oito anos.

Nós contemplamos uma à outra, eu emudecida e beligerante, ela deliciada e altiva, exatamente como eu lembrava. Foi como olhar para a superfície de um espelho sem moldura. Nossos rostos quase poderiam ter sido talhados pelo mesmo escultor, não fosse a diferença fundamental de que os olhos de Mahira eram um poço sem fundo. Olhar-se neles era como despencar de cabeça em um abismo sem fim. Eram olhos tão penetrantes quanto a lâmina de minha espada. Intimidavam, seduziam, enlouqueciam — até mesmo matavam.

Mahira havia envelhecido pouco nesse tempo. As rugas que vincavam os cantos dos seus lábios ou olhos eram sutis demais, ou talvez passassem despercebidas no seu rosto de feições simétricas. Um rosto esculpido por deuses, eu já ouvira estranhos murmurarem enquanto ela passava, um rosto feito para trazer perdição e discórdia.

Seu longo cabelo prateado ainda caía em cachos perfeitos até os seus quadris e sua pele ainda conservava a alvura imaculada de outrora. Vestia uma túnica branca longa, mas seus pés delicados estavam descalços. E no pescoço trazia a coleira de prata com a qual fora presenteada na noite em que Torandhur caiu.

A corrente que ouvi tilintar mais cedo era feita de puro aço e pendia da parte de trás de sua coleira, enrolando-se por metros e mais metros até uma argola de ferro fixada ao piso; não limitava seus movimentos, mas a impedia certamente de deixar os aposentos do rei.

Cheguei ainda mais perto e Mahira também, até que estávamos frente à frente. Meu coração saltou de modo violento no meu peito. Ela estendeu uma mão e tocou minha face, seu toque era frio. O repuxar dos seus lábios e a suavidade do seu olhar sugeriam aprovação.

— Olhe só para você, tão crescida, tornou-se uma beldade.

Seus dedos escorregaram para o meu cabelo, enrolando um cacho no indicador.

— Sempre soube que havia um potencial oculto em você, Nysa — murmurou num tom sombrio. — Ele só precisava florescer, desabrochar.

Engoli em seco e Mahira afastou sua mão. Virou-se com um sorriso frio e se aproximou de uma mesa para se servir com vinho num cálice incrustado de rubis. Cada gesto seu era gracioso, nunca houve nada de mundano nessa mulher. Mesmo o mero ato de beber vinho se tornava um ritual sagrado para ela.

— A rainha me manteve a par de tudo — comentou casualmente, alisando a borda dourada do cálice com um dedo delicado. — Sobre o torneio, as suas vitórias — ela se virou para mim com outro de seus sorrisos maliciosos —, sobre o modo como você ganhou acesso a esse palácio e a essa corte. Foram notícias deliciosas de se ouvir. Devo admitir que depois de tantos anos, estava começando a perder as esperanças — divagou. — Mas estou contente por haver me equivocado a seu respeito.

— A rainha? — indaguei num tom seco, pronunciando-me pela primeira vez desde que pisei naquele quarto, e Mahira ergueu as sobrancelhas, aturdida.

Nysa - A Campeã de AstherOnde as histórias ganham vida. Descobre agora