Capítulo Quarenta e Seis: Acorrentada pelo Passado

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DEVO TER ADORMECIDO em algum momento nos braços de Sarghan, protegida e saciada depois de havermos passado uma boa parte da noite acordados, trocando carícias e promessas apaixonadas. Infelizmente, nem mesmo eles puderam me proteger do meu passado obscuro quando ele espreitou meus sonhos e me fez recordar do dia em que todo o meu tormento teve início — ninguém poderia me proteger do meu passado e disso eu sabia mais do que qualquer um.

No sonho, eu estava mais uma vez sondando os jardins reais de Astradh atrás de um vestígio de presença da mulher que eu idolatrava mais do que tudo no mundo. Quando a encontrei, bela, envolta em seda e renda alvas, e com os longos cabelos prateados ondulando junto à brisa, eu soube que não poderia mais me conter. Era agora ou nunca, e eu jurei que não seria covarde daquela vez.

Mesmo assim, descobri-me imersa num terror mudo, certa de que, como das outras vezes, ela me receberia com indiferença ou pior: me rejeitaria. Era por isso que cerrava os punhos de hora em hora, inspirando fundo para me acalmar. Mas quando deixei meu esconderijo estúpido com passadas decididas, eu ainda tremia como uma folhinha ao vento por dentro.

A mulher, acomodada no banco de pedra como uma estátua viva esculpida a cinzel a partir das mãos do mais talentoso de todos os artistas, se virou para mim enquanto eu me aproximava.

Seus olhos eram mais verdes do que qualquer floresta que existisse, mais vívidos e penetrantes do que a mais preciosa das esmeraldas. Sempre que me olhavam, eles faziam com que eu me sentisse pequena, insignificante e indigna como um verme rastejante.

Parei a uma distância respeitável e a mirei assustada. Meu coração acelerou, torceu-se no meu peito enquanto meu estômago torceu-se no meu ventre. Todos os meus órgãos e ossos se tornaram pó sob o seu escrutínio curioso. Abri a boca, mas minha voz não veio. Eu era patética.

Ela, então, tomou a dianteira, envergonhando-me:

— O que você quer?

Sua voz era suave, um deleite para os meus ouvidos; era pura melodia. Queria poder ouvi-la por todos os dias da minha vida. Queria que murmurasse o meu nome, que me dissesse palavras afetuosas, que me embalasse até eu adormecer. Eu queria tantas e tantas coisas.

Meus lábios tremeram, tive de apertá-los para não demonstrar fraqueza. Seja forte, seja corajosa. Cerrei meus punhos nervosamente. Quando senti que estava prestes a cair no choro, encontrei a coragem que me faltava:

— Quero que me ame — murmurei com seriedade e meu pedido premente pareceu interessá-la. — Quero que me aceite. Faço qualquer coisa para que me ame. Serei o que quiser que eu seja, farei tudo o que me pedir.

Ajoelhei-me diante dela, sujando meu vestido branco, e tive a audácia de estender as mãos para tocar as dela, repousadas sobre o seu colo. Eu não era digna, eu não merecia. Ela era perfeita. Eu, não. E mesmo assim ela não fugiu ao meu toque ou demonstrou asco.

— Por favor, me diga o que preciso fazer para ser digna do seu amor.

Seus lindos lábios esculpidos se curvaram num sorriso frio, desapaixonado, e cheio de malícia. Sua mão envolveu meu queixo e seu rosto se abaixou até estar à altura do meu. Deusas, ela era linda, magnífica. Uma beleza estonteante. Eu não era digna.

— É um pedido muito perigoso para ser feito, você não acha? — assegurou-me.

— Não me importo. Só preciso que me ame — insisti, engolindo com dificuldade e a mulher tombou o rosto para me analisar de outro ângulo.

— Quer que eu te ame? — perguntou-me e eu anuí de modo dificultoso, uma vez que seus dedos ainda seguravam meu queixo. — Pois então eis o que quero que faça: viva por mim, respire por mim, minta por mim, traia por mim, mate por mim. Seja leal apenas a mim, seja devotada apenas a mim, ame apenas a mim, alimente dentro de você uma escuridão tão densa e tão nefasta, uma raiva tão inexorável que colocará todos os nossos inimigos de joelhos.

Nysa - A Campeã de AstherOnde as histórias ganham vida. Descobre agora