Capítulo Cinco: Salvação e Ruína

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A MAGIA QUE CORRE no sangue dos povos de Eghau é muito, muito antiga. Data-se de muito antes dos eventos da Ruína quando os deuses ainda eram eruditos que caminhavam junto à humanidade, compartilhando seu conhecimento e sabedoria infinitos.

Os deuses foram os responsáveis por ensinar ao homem como chamar pelos quatro elementos: água, fogo, terra e ar. Ensinaram a leitura e a escrita, e algumas formas de arte. Ensinaram a olhar para as estrelas e se guiar através delas. Ensinaram a distinguir as estações e os ciclos de chuvas e cheias dos rios, e ensinaram a matemática. Diz-se que ensinaram técnicas de agricultura e de pesca e, mesmo que não tenham pretendido, ensinaram a humanidade a guerrear.

Apesar de muito do idioma antigo ter se perdido ao longo de tantos milênios, há alguns afortunados que se lembram das conjurações e dos encantos, transmitidos pelas bocas dos próprios deuses na aurora dos tempos.

É natural que numa família pequena nasça um Encantador de Armas, por exemplo, dotado de habilidades que se adéquam às batalhas. Ou Curadores que nascem com uma predisposição antinatural para diagnosticar doenças e para produzir remédios milagrosos. Há ainda os Eruditos, homens tão íntegros e sábios cujos conselhos são requisitados pelos reis mais justos. E há os Artífices, cujas mãos podem moldar, lapidar e esculpir qualquer coisa com qualquer material.

O que muitos chamariam de talento ou aptidão, na verdade trata-se de um resquício da magia e do conhecimento que foi passado à humanidade na forma de um legado divino, uma dádiva confiada pelas deidades. Muito se perdeu destes dois também, lamentavelmente, embora a humanidade tenha aprendido a sobreviver e a evoluir sem a ajuda dos deuses mais tarde e especialmente depois de toda a devastação que sofreu.

Minha magia não é tão diferente, embora seja proveniente de uma fonte muito mais pura, tornando-a, assim, muito mais forte e destrutiva. Ela deriva do poder das deusas a quem eu honro, inesgotável e irreprimível.

Embora a correia imposta a mim, quando me tornei escrava do reino de Asther, tenha enfraquecido uma boa parte dos meus poderes, limitando meus encantos, eu ainda sinto a magia correr pelas minhas veias; é uma parte inexpugnável de mim, e é o que queima na minha alma que a alimenta.

Acredito que quem as criou, há muitos anos — quando a escravidão foi instituída e homens e mulheres que possuíam resquícios de magia no sangue se tornaram um estorvo para seus donos —, jamais as projetou pensando especificamente em nós, mensageiros dos deuses.

Ela sempre representou tudo o que havia de mais repugnante para mim: humilhação, indignidade, abandono, solidão. A mesma correia, aliás, que outro Encantador lutava para remover do meu pescoço agora.

Debruçada sobre uma mesa e com a minha nuca exposta para um completo estranho — o que significava exigir muito mais dos meus instintos de autopreservação do que era recomendado —, arranhei seu tampão com minhas unhas curtas, lascando a madeira, devido ao desconforto que sentia.

— Está quase acabando — garantiu meu senhor, Gorah, curvado sobre mim e retendo-me sobre a mesa para que não fizesse nenhum movimento brusco enquanto a faca encantada com fogo avançava sobre o couro resistente.

Mas, pelas deusas, aquilo queimava!

Paciência, Nysa, o processo está quase concluído. Posso sentir. O otimismo inusual de Cadius poderia ter me feito rir, se meus dentes não estivessem tão cerrados que temi que se partissem.

Afundei os dedos em garras na madeira nobre da escrivaninha de meu senhor quando o Encantador murmurou as palavras finais do cântico, cortando a correia com sua faca flamejante. Juro que saltei para longe como uma gata assim que ouvi o som do couro se rompendo num estalido abrupto.

Nysa - A Campeã de AstherOnde as histórias ganham vida. Descobre agora