II

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Acordar naquela manhã não havia sido tão empolgante como Érika havia imaginado. Não porque havia dormido tarde na noite anterior, empolgada em arrumar as malas para a viagem. Tinha passado horas selecionando que roupas deveria colocar em uma única mala, a maioria se resumindo em calças jeans, blusas pretas e jaquetas de couro. Não, toda a indisposição era fruto de um gênio preguiçoso e domado pelo tédio. Contra a própria vontade, levantou-se e dirigiu-se para o banheiro. Passou um tempo em frente ao espelho, em um dilema pessoal com seu reflexo, ponderando se deveria ou não voltar para a cama e dormir pelo menos mais um pouco. Os cabelos emaranhados não demonstravam uma pessoa disposta a querer começar o dia com ânimo. Entretanto, ela sabia o que tinha para fazer, tudo o que vinha pela frente. Tomou um longo banho, eliminando qualquer resquício de sono e indolência. Voltou para o quarto, hidratou a pele com seu creme favorito, vestiu-se de uma calça larga e camisa moletom, e saiu para tomar café. A viagem estava marcada para às 14:00h.

Como não tinha carro, foi uma caminhada de aproximadamente quinze minutos até o local onde costumava ir todos os dias. Érika estava tão acostumada a fazer esse trajeto que era capaz até de saber quantos passos dava da sua porta até a porta do recinto. Sua vida atualmente meio que girava em torno de um padrão, as coisas quase metodicamente calculadas em um ritmo automático.

Ao entrar pelas portas duplas da cafeteria, encontrou Doralice, sua melhor amiga, já sentada em uma das mesas à sua espera naquele local, com um cardápio na mão. Parecia concentrada em ler as opções para o café da manhã.

— Por que está lendo o cardápio se sempre escolhemos a mesma coisa? — perguntou Érika, enquanto ocupava uma das cadeiras.

— Porque hoje é um dia especial e talvez eu queira uma coisa diferente. — Doralice respondeu ainda lendo o cardápio.

— Humf! Não tem nada de especial nesse dia. — Érika soltou um suspiro.

Doralice finalmente fechou o cardápio e voltou seus olhos para encarar a amiga. Ao ver seu estado casual e simples, perguntou:

— Nossa, que cara é essa de quem esqueceu de dormir a noite?

— Ai, amiga. Perdi o ânimo para a viagem. — Érika respondeu, abafando um bocejo.

— Não era você que estava louca para sair da cidade grande? Que reviravolta nada surpreendente é essa? — a amiga desdenhou.

— Não sei. — ela respondeu com o olhar distante. — Estava pensando e não sei se posso esperar muita coisa de uma cidade pequena.

— Mas não é no fim do mundo onde as coisas mais loucas acontecem?

— Será? Lá onde Judas perdeu as meias?

— Você quis dizer "as botas", não é?

— Não, as botas ele perdeu em algum lugar mais perto. — Érika fez o comentário e arrancou uma gargalhada alta de Doralice, atraindo alguns olhares não tão desejados.

Doralice e Érika já eram amigas há alguns anos. Érika havia passado por um momento muito difícil em sua vida e Doralice apareceu como um anjo salvador, para colocar tudo em seu devido lugar de novo, fazer com que ela não desistisse e visse que ainda valia a pena ter alguma coisa pela qual lutar. As duas construíram uma amizade inabalável, digna de admiração pelas pessoas ao redor. Apesar de Doralice ter um jeito estranho, Érika não se importava e estava sempre disposta a acertar um soco em quem tentasse mexer com sua amiga, o que era totalmente recíproco da parte de Doralice.

— O fato é que você deve ir sem esperar nada em troca, e aproveitar cada emoção que surgir por lá, curtir os momentinhos, sabe? — Doralice comentou.

— É, eu tô sabendo. — ela disse, por fim.

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Érika passou a manhã inteira se despedindo de amigos, indo na casa ou no trabalho de cada um deles, com cumprimentos rápidos e direito a fotos com alguns deles, enquanto tinha Doralice como sua motorista particular. Preferia fazer esse tipo de coisa pessoalmente, ao invés de mandar uma simples mensagem pelo celular. Alguns poderiam chamá-la de antiquada, mas é que o contato "olho no olho" sempre foi importante para ela. Gostava de ver a reação das outras pessoas diante de emoções importantes. Não que aquilo fosse, mas...

Não havia muita gente para se despedir. Mais particularmente, as despedidas se resumiram em pessoas do trabalho, pessoas que já a acompanhavam um bom tempo e sabia quem Érika Green era, ou quase. Eles estavam sempre ali quando ela precisava e não teria sido educado ir para outro lugar sem uma despedida casual e formalizada. Todos os comentários foram basicamente os mesmos, de que logo ela resolveria tudo para onde quer que estivesse indo e estaria de volta, pois não tinha como se livrar da amada cidade de Holden City.

Érika e Doralice almoçaram no restaurante favorito de ambas, e Érika se contentou em comer apenas uma salada, acompanhada de um suco de frutas vermelhas, ao passo que Doralice pediu uma porção gordurosa de frango e outros aperitivos. Érika já sabia dos hábitos alimentares da amiga, mas mesmo assim perguntou.

— Para onde vai tudo isso? — esbanjou uma surpresa engraçada no rosto.

— Você quer mesmo que eu responda essa pergunta enquanto você come? — a amiga perguntou.

Ambas riram.

Às 14:00h, Érika já se encontrava dentro do ônibus. Não havia mais ninguém para ela se despedir. Os pais haviam falecido há dez anos e Érika tinha decidido se afastar do restante da família. Não tinha contato com nenhum parente há nove anos e meio. Isso não significava que ela odiasse seus familiares ou que eles a odiavam. Era apenas que agora ninguém mais entendia o que ela era.

O ônibus partiu 10 minutos depois e ela aproveitou para ler um livro que havia ganhado de presente de aniversário, Teu Pecado, de mistérios policiais. Acabou pegando no sono e sete horas depois abria os olhos, no exato momento em que o ônibus passava pela placa na entrada da cidade nova, que dizia: "Bem-Vindos a Setville".

A EscolhidaWhere stories live. Discover now