Outubro III

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– Vocês estavam se beijando...?

Uma meia hora depois, todos devidamente sentados na mesa da cozinha, cada um encarando um prato de macarrão ao molho quase intocado.

A pergunta veio do Lucas.

Eu e o Sander respondemos ao mesmo tempo:

– Sim.

– Não.

O sim veio dele, o não veio de mim.

Nós nos entreolhamos meio desesperados e frustrados e o gringo soltou, num fôlego só:

They saw us!*

(*Eles nos viram!)

– Quê?! – meu cérebro deu um nó, não entendi porcaria alguma!

Não havia notado ainda que o Sander sempre volta pro idioma materno quando tá nervoso, ou quando quer falar mais sinceramente... Não sei explicar. Mas é como se no nosso idioma "íntimo" as coisas soassem mais... sinceras. E ele havia ficado tão perplexo que saiu automaticamente, eu acho.

– Uau! Ele fala inglês mesmo! – o Miguel se empolgou, ignorando momentaneamente o desconforto do ambiente.

– É lógico que fala! Ele é inglês, ué! – o Lucas rebateu.

– Inglês não, americano! – o Sander contestou, levemente chateado pela nomenclatura.

Nós quatro nos encaramos depois da onda repentina de falas aleatórias. O intercambista suspirou do meu lado e esfregou a testa com as mãos.

– Lucas, – ele começou, parecendo cansado. Eu não sabia como reagir nem como ajuda-lo na nossa defesa. Engoli seco, percebendo que o gringo buscava minha aprovação com o olhar. – escuta... Quando você gosta muito de alguém, você... a gente, às vezes, não abraça e beija a pessoa?

Ele falava bem devagar, como se estivesse escolhendo as palavras – ou talvez fosse só o medo do inglês atropelar tudo de novo. Ou as duas coisas juntas, vai saber.

– Sim. Mas não beijo na boca. – Lucas retrucou e me olhou rapidamente. – E quando dois homens se beijam é coisa de veado.

O gringo ficou branco feito papel. Não sei como ele conhecia aquele palavreado – nem o Sander, nem o Lucas – mas meu sangue ferveu e me estiquei na mesa pra ficar cara a cara com seu pseudo-irmão mais novo.

– Quem te disse isso? – mantive a voz firme pra não gaguejar, mas sem efetivamente demonstrar toda a raiva que eu sentira ao ouvir a nomenclatura que ele usara. Lucas me fitou com certa apreensão, notando minha veia pulsando de raiva no pescoço. – Você sabe do que tá falando? Aliás, isso era pra ser ofensivo? Porque, fala sério, não faz sentido! E outra: você beijar alguém é algo ruim por acaso? Que eu saiba, beijo só significa coisa boa. Qual é o problema de beijar? Homem, mulher, cachorro, papagaio? – o Miguel deu uma risadinha, mas voltou a ficar sério, prestando atenção em mim. Então me dirigi a ele também. – O beijo das outras pessoas tá te machucando? Tá te fazendo algum mal? – os dois fizeram que não com a cabeça. – Ótimo, porque eu também acho que não. Você vê alguma diferença entre ver dois caras se beijando, ou  duas meninas, ou um cara e uma menina? Aliás, vocês já tinham visto por acaso? Agora que viram, não é a mesma coisa o que todo mundo faz? Não é beijo do mesmo jeito?

Houve um minuto de silêncio. Literalmente.

– Eu acho que é a mesma coisa. – meu priminho se convenceu, me enchendo de orgulho, tanto que eu quase me esqueci que tava passando um sermão nos dois.

Aprendendo a Gostar de Mim {Aprendendo II}Onde as histórias ganham vida. Descobre agora