7.Ceticismo Parte VI

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Miguel tinha preparado a comida na noite anterior, como de costume. Alguns legumes, um bife de frango e arroz. Eram o suficiente para ele, a irmã e o avô. Normalmente ele engolia apressado e deixava o restante em cima do fogão para a irmã e o avô.

Em dias bons o avô comia sozinho, embora Miguel sentisse um medo absurdo do velho vir a explodir a casa, nos dias ruins a irmã era obrigada a usar de toda a sua coragem para alimentar o Sr. Arcanjo. E ela conseguia, seu medo não era grande o suficiente a ponto de abandonar o avô sem uma refeição adequada.

— Olha só, você é vegano ou algo assim? — Perguntou Miguel.

— O que é vegano?

— Hã... é tipo... tipo uma pessoa que não come carne e outras paradas que saem de animais....sei lá... — Tentou explicar de forma simples.

— Eu acho que não... Aquele pão que você me deu, tinha frango nele.

— Verdade! Então é seu dia de sorte. — Sorriu Miguel— bife de frango pra você agora e bife de boi pra você mais tarde!

Aghi riu, aparentemente sempre que Miguel abria a guarda com um sorriso ou uma brincadeira ele ficava feliz.

Miguel comeu a refeição apressadamente enquanto Aghi deliciava-se com aquela comida simples da mesma forma que um príncipe saboreia uma refeição em um palácio. Era simplesmente delicioso, era simplesmente um bife de frango com vegetais explodindo suas papilas gustativas — saturadas pelo pão dormido da padaria em frente ao beco que estava.

— Me faz um favor? Leva comida pra Sofia e para o vovô? Eu vou correr antes que eu fique desempregado. — Disse Miguel.

— Pode deixar, eu te ajudo! — Aghi respondeu com um sorriso.

E assim Miguel saiu de casa apressado, com medo de um novo atraso e possíveis broncas que o esperariam. Ele confiou plenamente naquele garoto, confiou a guarda de sua irmã e de seu avô, algo que ele só entregaria a alguém de seu círculo social e não a um menino de rua que ele mal acabara de conhecer. Mas não tinha escolha, talvez ele ligasse para a namorada passar em sua casa e ver se estava tudo bem, mas isso demandaria uma demorada explicação sobre o motivo dele abrigar um garoto de rua.

Na garagem, Miguel conferiu as horas no celular e percebeu o atraso, deveria estar no trabalho a algum tempo. Por sorte sua moto, uma HONDA CBR 1000 RR, fabricada há onze anos, estava com o tanque cheio e ele não precisaria pegar um ônibus e alongar seu atraso em mais meia hora.

A moto foi comprada pelo pai no ano em que ele morreu, das poucas lembranças dele a mais marcante era ele estacionando a moto que acabara de comprar e a mãe xingando o gasto absurdo em um item típico de uma crise da meia idade. Miguel viu seu pai com aquele capacete descendo da moto enquanto o contemplava com olhos fascinados, o mesmo olhar que um garoto faz quando encontra o melhor jogador do seu time de coração presencialmente, era mágico.

Após a morte do pai, sua mãe pensou diversas vezes em vender a moto, um dinheiro assim ajudaria a família por algum tempo, mas não conseguia desapegar. Miguel sempre achou que o motivo dela não se desfazer era ligado a uma esperança de que a morte do marido fosse apenas um pesadelo, e a moto simbolizaria uma volta que nunca acontecera.

Ele odiava ir trabalhar de moto, era sempre a mesma coisa: Seu gerente, um homem gordo de meia idade com um vasto bigode sempre ironizava o fato de um jovem com pouco dinheiro ter uma HONDA CRB, e por mais que Miguel explica-se a origem da moto como sendo uma herança do pai, não fazia a menor diferença para o gerente gorducho e seu lema — "imagina se tivesse dinheiro, heim" — habitual. Mas, ele não passaria pelo teste de ferro do sarcasmo hoje, estava irritado para as provocações habituais.

Quando Miguel preparava-se para subir na moto uma rajada de vento frio passou por ele, era um vento estranho, tão gelado quanto ele imaginara que seria o vento que carrega a morte. Ele,o vento, não apenas derrubou a moto, também passou por Miguel de tal maneira que parecia atravessar sua pele, acariciar seus ossos e, por fim, sair de seu corpo deixando um calafrio sinistro subindo por sua espinha.

A moto caiu no chão, de tal maneira que ele imaginou o vento a atravessando da mesma forma. Quando conseguiu levantar o veículo, sentiu-se aliviado ao constatar que a pintura se manteve intacta, como o resto dela, mas em seu íntimo sentiu que sua velha amiga sofrera com o baque daquela rajada — da mesma forma que ele sentiu-se atravessado de maneira sinistra.

Colocou a chave na ignição e não conseguiu dar a partida. Tentou e tentou mais algumas vezes até constatar que se quisesse chegar a tempo no serviço deveria pegar um ônibus.

E enquanto perguntava-se o motivo daquele dia correr de forma estranha, ele escutou uma voz dentro de sua cabeça dizendo:

— Não se assuste ainda, o pior está por vir.

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Aquele abraço!

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