33.Família Parte III

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O velho cemitério, última cama de tantos corpos naquele derradeiro sono que todos conhecerão, ou nem todos, se a voz da mulher do além estiver certa, refletiu Miguel.

A chuva leve, naquela madrugada, tocava o solo como um afago, seria belo se não fosse aquela visão trágica dos túmulos violados: Joana, a mãe, sua lápide em frangalhos, a pedra dividida em duas e a madeira de seu caixão, despedaçada. O túmulo do pai em melhor estado, cavaram até certo ponto, mas por algum motivo desistiram.

Miguel encarava com seriedade o tumulo da mãe. Os dois homens, ao seu lado, demonstravam total encabulamento por aquela situação, o coveiro e um dos administradores do sepulcrário.

— Rapaz, eu realmente sinto muito. Uma coisa assim, nossa! Quem poderia fazer algo tão baixo? Roubar um túmulo, eu nunca vi nada tão deplorável. — O jovem administrador, um homem alto, com uma voz grossa e uma roupa bem alinhada, até mesmo para aquele horário atípico.

— Oras, o senhor não, mas eu sim! Trabalho aqui a vinte anos, e te digo que esses garotos de tempos em tempos vem aqui fazer essas heresias! Se um dia, eu pegar um deles, juro por Deus que vai ter mais uma cova!— Em contraste, o coveiro era um homem velho, forte e com a costumeira simplicidade de outros tempos, roupas simples e terra em suas unhas.

Miguel virou-se na direção do homem mais velho, e disse:

— Então você viu quem fez isso? Isso já aconteceu outras vezes?

— Não, nunca vi, moço. Eles são espertos, o cemitério é enorme. Tenho certeza que são esses garotos. Eles são os únicos que ficam perambulando por aqui. Quem mais ficaria rondando um cemitério de madrugada?

Aghi encarou os olhos do amigo, a resposta era óbvia: não eram garotos, certamente os malditos Carniçais, violadores de túmulos, ladrões de tumbas. Não importa se eram reis, faraós ou indigentes, aquelas coisas estavam lá para violar o sono eterno.

Por que sua mãe? Ou melhor, por que não seu pai? Puxa pai, será que nem a escória do mundo quer você? Pensou Miguel. Achou melhor não atribuir nenhum atributo moral a essas criaturas, suas atitudes e escolhas independem das escolhas dos alvos durante a vida.

— Miguel, é esse seu nome, certo? — Miguel consentiu com a cabeça — Amanhã mesmo providenciaremos uma lápide nova, já registramos um boletim na delegacia. Você não precisa se preocupar com nada. Pela manhã, resolveremos tudo.

Resolver? Vocês fabricam ossadas de pessoas queridas, por acaso? Refletiu novamente, Miguel. A pressa em confortar a dor, o desespero em resolver o que não pode ser resolvido, o ser humano parece um hamster correndo em uma roda sem destino.

— Vou ficar aqui um pouco, tem problema?

— Olha, acho melhor vocês irem embora, essa chuva vai engrossar. Logo, logo isso aqui vai ficar cheio de barro. — Observou o coveiro.

— Que isso, Dimas! Deixa os garotos ficarem um pouco. — Retrucou o administrador — Nós estamos indo, mas vou avisar o guarda-noturno, quando chove ele costuma ficar na portaria leste, é só falar com ele. O portão que usamos para entrar vai ficar apenas escorado. Sinto muito, novamente. Boa noite pra vocês.

Despediram-se dos dois homens, que em passos largos caminhavam em direção a uma pequena estrada de pedras sobrepostas, caminho que levava a entrada principal. Deixaram um guarda chuva com Aghi, e partiram em um carro;

Aghi recostou a mão no ombro de Miguel, em sinal de empatia.

— Você sabe quem fez isso, certo? — Perguntou Miguel.

— Foram os Carniçais.

— Por quê? O que eles ganhariam com isso? Só os ossos dela deveriam estar aqui.

— Eles são ladrões de túmulos, Miguel. Provavelmente só queriam irritá-lo.

E provavelmente conseguiram, nem o próprio saberia dizer que tipo de pensamentos vingativos tomavam sua mente naquele momento. Tudo que ele queria no momento era encontrar um Carniçal e repetir o massacre daquela fatídica noite.

Sentou-se com as pernas cruzadas na grama molhada, encarando a lápide quebrada. Precisava de um tempo, precisava refletir sobre tudo que estava acontecendo e sobre a saudade que há muito tempo não tomava seus sentimentos como naquele momento. Aghi, como um bom amigo, apenas ficou em pé ao seu lado segurando o guarda-chuva, ficaria com ele quanto tempo fosse necessário.

Algum tempo depois, ligaram para Sofia. A garota não atendeu, obviamente já adormecera esperando o irmão. Melhor assim, explicar algo desse tipo por telefone sem ao menos ouvir a voz da garota, seria uma tortura muito grande.

A medida que a noite avançava a chuva ficava forte, o homem mais velho não mentiu, a lama começou a tomar o entorno dos sapatos.

A medida que a noite avançava a chuva ficava forte, o homem mais velho não mentiu, a lama começou a tomar o entorno dos sapatos

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— Miguel, acho melhor a gente ir, a Sofia vai precisar de você.

— Tudo bem, vou apenas mandar uma mensagem pra Isabel, ela deve estar muito preocupada.

Quando pegou o celular, tentou aproximá-lo do guarda-chuva para digitar, aquela altura Aghi mal conseguia segura-lo devido à força dos ventos, e seu único abrigo contra toda aquela água voou.

— Merda, o guarda-chuva, Aghi! Pega ele!

O garoto correu na direção da pequena estrada para tentar agarrá-lo. Miguel percebeu que na direção em que a criança se deslocava, um vulto de uma pessoa alta os observava. Provavelmente um homem, que com um movimento agachou para segurar o guarda-chuva.

Aghi estava parado na frente dele, a chuva forte não permitia que enxergasse com mais detalhes a figura. Algo estava acontecendo, o homem e a criança estavam parados. Seria o guarda-noturno? Tentava chamar por Aghi, em vão, o garoto não respondia. Correu na direção dos dois.

Agora podia ver claramente, era alto, calvo, com uma barba bem feita e uma postura excelente. Suas roupas eram uma batina, com vários botões na frente, apesar da chuva forte, suas vestes pareciam muito bem alinhadas.

Aghi estava paralisado, era como se estivesse diante de alguém conhecido, porém, de alguma forma estava atônito como nunca ficara, nem mesmo quando lidaram com Carniçais.

— Tá tudo bem, cara? Você conhece esse senhor?

Aghi não respondeu, estava em choque. Todavia, o homem sorriu para Miguel e se apresentou:

— Muito prazer, sou Alexandro Todorov.

E lá estava ele, o homem tão mencionado por Aghi, o tutor desaparecido.


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Olha só, consegui postar o capitulo antes da data! É um milagre!


****PRÓXIMO CAPITULO 05/05****

Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora