55. Guardião Parte V

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Miguel ignorou os avisos do Guardião e correu na direção da ponte que balançava em sintonia com os ruídos dos Carniçais. Aghi estava parado no meio da ponte, deitado, ele tentava se manter seguro enquanto segurava uma das cordas laterais.

Começou a caminhar sobre a ponte, o primeiro passo já o fez sentir o peso que o amigo carregava naquele lugar, a agonia profunda que tomava sua alma, rasgava sua e mente e espírito. Miguel arqueou o corpo com dificuldade e usou cada um dos lados da ponte, como uma muleta para se manter de pé, enquanto sutilmente ela era balançada pelo vento.

Aquela sensação era horrível e quanto mais avançava, mais as criaturas alardeavam, do fundo da imensa cavidade natural, como abutres esperando uma refeição. Era exatamente essa a sensação que despontava em sua mente, os grunhidos bestiais eram como uma comemoração, os Carniçais apenas esperavam que os jovens sucumbiriam ao terror daquele lugar e no auge de suas fraquezas atacariam.

Alguns passos trôpegos e ele já podia ver o amigo com nitidez, ele não fora longe, mas que poderia culpá-lo? Era impossível para uma pessoa comum dar mais que três passos naquele lugar, e mesmo Miguel, com sua força adquirida no embate do beco, não conseguia se locomover bem. Aghi estava quase desmaiado, e pouco alcançara a metade do caminho, estava há metros da outra ponta. Os joelhos foram de encontro a madeira, era impossível caminhar, teve que se arrastar agarrando as cordas para enfim alcançar a criança.

Tocou sua perna para mostrar que estava ali e a reação de surpresa de Aghi foi instantânea.

— Miguel... o que você tá fazendo? Você não deveria pisar aqui... 

— Na verdade, foi impulso, meu amigo. — Ele se arrastou para o lado do garoto — eu não posso te deixar morrer aqui sozinho.

— Você não entende... eu preciso fazer isso.

— Não leve a mal, cara, mas você não consegue passar daqui e não estamos nem na metade.

Aghi mordeu os lábios enquanto olhava para frente, a frustração tomava sua face. Era nítido que o garoto queria fazer o percurso, mas seu corpo não respondia mais aos seus comandos, tentava se mover, contudo, apenas conseguia se balançar sem sair do lugar. Estava no auge da exaustão física e mental.

Miguel tentou tomar a frente para puxar o menino e teve sua desconfiança esclarecida, apesar de ser a metade do caminho era impossível seguir, a dor e a horrível sensação de ter a alma arrancada do corpo pioravam a cada passo. A questão não era distância, era proximidade: quanto mais se aproximavam da outra ponta, pior ficava o castigo imposto por aquele lugar.

A única opção era desistir e tentar retornar.

Levantou-se com dificuldade, as criaturas urraram em desafio, pegou desengonçadamente o corpo de Aghi e o colocou nos ombros.

— Miguel... não faz isso...

— Sempre tem o amanhã, Aghi. Hoje nós perdemos.

Tentava se arrastar pelo caminho de volta, era a consagração para as criaturas mergulhadas na imensa escuridão.

— Por favor, Miguel. Me deixa aqui, eu tenho que fazer isso. O Guardião confia em mim...

— Não! Se esse Guardião Santo quer fechar essa merda, ele que vá até lá.

Miguel deu alguns passos, a dor tomava seu corpo, carregar o garoto naquele lugar era como erguer um carro, tentou se arrastar pela cordas e permanecer de pé, mas não resistiu e tombou seu torso.

— Miguel...

— Droga, eu não consigo, Aghi... Acho que nós vamos morrer nessa merda de ponte.

Aghi virou o corpo e olhou para cima, estavam deitados na ripa de madeira, sem poder prosseguir ou retornar, sair daquele lugar era improvável.

Aghi começou a rir.

— Mas que porra é essa... Por que você tá rindo?

— Deu tudo errado... Tudo...

O garoto prosseguiu com a risada, era como uma crise, em sua espontaneidade ele não conseguia conter a gargalhada. Miguel sentiu a dor do amigo e o acompanhou naquela risada nervosa.

A risada, gradualmente, deu lugar as lágrimas no rosto do garoto.

— Desculpa, Miguel... Me perdoa.

— Não esquenta, meu amigo. Eu entrei nesse barco por minha vontade.

— Eu queria te salvar, salvar sua família, o senhor Todorov... Não consegui salvar ninguém... Decepcionei até o Guardião Santo...

— A culpa não é sua. Você ainda é um garoto, caramba... Não deveria lidar com monstros, anjos, nome de Deus e essas coisas... Era pra viver sua vida, dar o primeiro beijo em uma garota da escola, estudar para prova de matemática, jogar um campeonato de algum esporte idiota, algo assim. Não é justo jogar todo o peso do mundo nas suas costas. E esse Guardião, ele não quer seu bem, ele nem deve ligar se você vai morrer, tá usando a gente de cordeiro de sacrifício.

De alguma forma as palavras de Miguel trouxeram paz na feição atormentada de Aghi.

— Miguel...

— O quê?

— Você é uma boa pessoa.

Miguel balançou a cabeça e fechou os olhos.

— Droga, Aghi... Eu também só queria te salvar, mas eu acho que dessa vez não vai dar.

Os grunhidos voltaram a entoar pela caverna, tornaram-se extremamente agressivos, os garotos sentiram uma dor extrema e antes que pudessem sucumbir e desmaiar, avistaram diversos tentáculos envoltos na escuridão da caverna despontarem na direção deles, sentiam as trevas dominarem suas mentes e espíritos.

Antes que pudessem sucumbir e perder a consciência puderam ver uma imensa luz irradiar pela caverna, revelando os pesadelos horríveis que habitavam aquele recôncavo, eram feras terríveis, tomadas pelos horrores do mundo, milhares de Carniçais, aquelas bestas de cor pálida se esgueiravam em velocidade na direção deles.

Era a manifestação de seus piores temores, se com dificuldade lidaram com algumas daquelas criaturas, nenhum deles podia dimensionar o que aquele número absurdo de Carniçais poderia fazer no mundo.

Um raio de luz, em meio as trevas, emanava do lado oposto da ponte, antes que pudesse desmaiar, como Aghi fizera, Miguel avistou uma figura flutuar acima da ponte, com fúria, era um contraponto aos Carniçais que sedentos corriam na direção deles, mas não pôde ver a conclusão daquilo, limitou-se a fechar as pálpebras e adormeceu naquele amaldiçoado lugar.

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Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora