10.Ceticismo Parte IX

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Naquele momento tudo que Aghi disse, sobre saber o nome de Deus ou esperar um Guardião Santo, fazia sentido — qualquer coisa naquele momento não seria absurda para Miguel. Sua mente sobrecarregada pela figura monstruosa não conseguia raciocinar nada. Foi quando Aghi voltou-se para ele com certa ternura e seriedade sólida, e disse:

— Foge daqui. Vai embora rápido, por favor!

— E-eu....Eu não...Como isso... — Miguel não conseguiu formular frase alguma.

— Vai! Sai daqui, agora!— Gritou Aghi.

Miguel despertou alguma força em suas pernas. Força suficiente para saltar do chão e correr na direção oposta, sem dizer adeus, sem olhar para a tal criatura ou até mesmo para Aghi. Seu corpo tomado por um instinto de sobrevivência moveu-se rapidamente, cambaleando entre a fumaça, sua mente tomada pela figura do caos autorizou e o resto de energia foi usado em sua fuga.

Correu em linha reta, os joelhos trêmulos e as pernas bambas, e claro a respiração cortante descendo como uma lâmina em sua garganta. Poderia gritar por ajuda até encontrar um policial, mas quem acreditaria que uma besta estava prestes a comer uma criança. Era insano, repetiu em sua cabeça, tudo era insano. Sua mente em conflito novamente fez as pernas tropeçarem em si mesmas e ele caiu com a face rente ao chão.

Quando percebeu estava fora da neblina, era uma simples rua mal iluminada e sem cheiro de morte. Sentiu que precisava correr mais. Seu corpo titubeava, ele não conseguiria andar mais. Precisava se acalmar o quanto antes, para recuperar as forças.

Os problemas da vida e sua predisposição a ansiedade profunda fizeram com que ele desenvolve-se uma forma de se acalmar e enxergar todas as possibilidades em situações de impasse e conflito. A técnica era simples: quando precisava se acalmar Miguel pressionava a nuca com a mão direita e massageava com a palma da mão. Quando precisava pensar melhor pressionava a testa e também a massageava com a palma da mão. Por mais bobo que parecesse o ato, desenvolvido ainda na sua infância, de alguma forma tinha um efeito extremamente positivo em situações de adversidade.

Nessa ocasião em particular, Miguel se viu obrigado a fazer ambos e posicionar cada uma de suas mãos nos locais designados: testa e nuca. Começou a pressionar a nuca e se acalmou um pouco, por um instante alguma racionalidade começou a surgir. Já sua testa pressionada não serviu de nada, nenhum plano poderia sair de sua cabeça naquele momento. Monstros existem e devoram pessoas, foi seu único vislumbre de pensamento. Foi quando sua boca disse:

— Desculpa, Aghi. Eu não quero morrer.— Murmurou.

Naquele momento lembrou-se do pequeno Aghi sentado de cocoras no meio-fio, erguendo seus olhos pra ele e se apresentando de boca cheia enquanto devorava seu sanduíche, "Sou Agnathi Galardoni". Ao reviver essa imagem na cabeça sentiu-se sujo.

— Ele...ele...não deveria ter vindo pra cá, o que eu podia fazer? Q-quero dizer, eu sou uma pessoa e não a porra de um cavaleiro santo, ou sei lá o quê!— Enquanto conversava com ele mesmo na rua deserta, sentiu que os olhos lacrimejavam.

Outra memória tomou sua mente: era Aghi se posicionando em frente à seu avô tomado pela ira, que tornava aquele velho e doce homem em alguém agressivo. Mas o garoto não teve medo em momento algum. Não senhor. Posicionou-se em frente ao Sr. Arcanjo e disse "NÃO". Era uma palavra pequena, mas o efeito foi grande na mente do velho. Ele acalmou o idoso e ajudou Miguel a colocá-lo em sua poltrona.

— Não, não, não. Ele vai sobreviver! Alguém vai salvá-lo, com certeza alguém vai salvá-lo! — As lágrimas começaram a rolar por sua face, tinham um gosto salgado pelo medo e amargo pela vergonha.

E quando Aghi entrou no quarto de sua irmã sem permissão e a cumprimentou como se fosse da família. Aquilo podia ter dado errado e causara revolta em Miguel. Mas nada aconteceu. A irmã não era de vidro, não era covarde como ele pensava e recebeu com empatia o olhar inocente daquela criança estranha que não queria fazer mal a ninguém. O garoto não se importou de fazer companhia para Sofia. Era um bom rapaz afinal de contas.

— Eu...eu...— criou forças para engolir o choro atravessado na garganta. — Eu sou um verme!— As lágrimas correram em direção ao solo.

A lua cheia pairava naquela noite fria. As nuvens se abraçavam, como se quisessem esconder as poucas estrelas que as luzes da cidade permitiam coexistir. A neblina, o cheiro de morte, a Cidade Cinza e tudo mais que Miguel podia imaginar estava bem ali sufocando sua alma. Ele teria uma alma? E os monstros teriam alma? Não saberia responder.

Era uma noite cinzenta de quarta-feira.

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Se você resistiu até aqui, parabéns! Conforme o prometido o próximo capítulo tem uma pegada ainda mais sombria. 

Obrigado pela leitura!

Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora