9.Ceticismo Parte VIII

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Apertou o passo, planejando sair daquela cena de possível assalto o mais rápido possível, e quando caminhou por alguns metros pôde notar uma névoa densa se formar na rua, concluiu que era uma espécie de nevoeiro, algo que nunca aconteceu em seu bairro — pelo menos não nos anos em que ele residira ali— e isso o assustava muito.

Quando forçou a vista enxergou um vulto de uma pessoa parada na esquina e antes que pudesse se assustar mais percebeu que o dono daquela silhueta era Aghi. O menino estava parado no meio-fio olhando fixamente para ele, tudo isso acompanhado de um olhar sério.

— Aghi! O que você tá fazendo aqui, garoto? — Disse ao aproximar-se dele.

— Você me chamou, eu vim. — Respondeu Aghi.

— Como assim eu te chamei? Eu tava no trabalho! Minha irmã tá bem? Aconteceu alguma coisa com o vovô?

— Eles estão bem, mas você me chamou e eu corri pra cá. — Insistiu Aghi.

— Do que você tá falando, Aghi?

— Eu estava na cozinha buscando água pra Sofia e então escutei sua voz pedindo socorro. Eu segui sua voz até aqui e te encontrei.

— Mas... como... Como você escutaria minha voz no apartamento? — Disse Miguel quase sem paciência.

— Eu não sei.

Um arrepio subiu pelas costas de Miguel quando ele percebeu que a neblina ficou mais densa, já rodeava toda a rua, era uma cortina que se formava na superfície. A fumaça branca, com traços de cinza, tomava conta de tudo ao seu redor. Aos poucos não conseguia enxergar nada que estivesse a mais de seis metros de distância. Os prédios altos, os muros chapiscados, até mesmo a esquina atrás de Aghi desapareceram. Além de estranhar as luzes piscando e a falta de pessoas em um horário de circulação de pedestres ele reparou que a rua não possuía carros, bicicletas, ônibus ou veículos estacionados, era um cenário de total abandono.

Um cheiro estranho subiu até suas narinas, era um odor denso como um cheiro de sangue e podridão agredindo não apenas seu olfato, mas infestando todo o seu paladar. Era um cheiro de morte. Miguel lembrou-se do acidente envolvendo dois homens naquela manhã, um deles morto — estatelado no chão como um cachorro atropelado. Lembrou-se também, ainda que sem saber o porquê, de todas as vezes que esteve diante da morte de alguém e como sempre esse mesmo gosto amargo subia por sua garganta.

— Vamos embora! Já tá tarde e essa rua me dá arrepios. — Disse Miguel agarrando o ombro do garoto e o fazendo andar.

Começou a sentir que eram observados e o horror que lhe acometeu no beco, quando avistou as presas nas trevas, voltou. Seria isso? Aquilo no beco era real? Não podia acreditar da mesma forma que não podia acreditar nas histórias fantasiosas de Aghi. Era tudo muito insano.

A névoa estava cada vez mais densa, sentiu que seu corpo estava pesado demais, a tal ponto que era difícil andar. Sua respiração estava difícil, cada puxada de ar era um esforço hercúleo. Olhou para Aghi e percebeu que ele não estava ofegante, andava normal, mas sua cabeça virando de um lado para outro parecia procurar algo ou alguém. Seus olhos voltados para cima indicavam que ou ele procurava alguém alto ou algo a média distância. E foi quando o garoto parou de andar, freiou bruscamente seu pequeno corpo e fixou seus olhos em um ponto.

— Achei, está ali, Miguel! — Disse Aghi.

— Ali o quê? — Perguntou enquanto se voltava para a direção que Aghi apontava.

Era um grande e pesado corpo envolto por sombras que criavam um vulto animalesco em meio a densa neblina com cheiro de morte. Naquela distância Miguel percebeu que a aberração nas sombras deveria possuir mais de dois metros e meio de altura. Ainda que estivesse parado bem na frente deles a monstruosidade estava tão envolta na fumaça, criada pela neblina que subia do chão, que não permitia um contato visual verdadeiro. O que poderia ser? Miguel não conhecia animais daquele tamanho, pelo menos não na forma humanóide, o susto foi seguido do grito:

— Puta que pariu! — Exclamou Miguel, enquanto caia no chão — Que merda é essa, Aghi? — Concluiu a última parte em sussurros.

— Acho que é um Carniçal. — Aghi respondeu com o olhar compenetrado em relação a criatura.

— E-e o que diabos é um "Carniçal"? — Comentou atônito com a cena que presenciara.

O vulto se aproximava em uma lenta marcha que estremecia e criava rachaduras no asfalto encoberto pela névoa. Os ruídos, bestiais como grunhidos maquiavélicos davam a sensação de que a besta detinha algum nível de racionalidade e estava prestes a se comunicar. Então aquela voz abrupta rasgou o ar como se saísse de uma garganta dilacerada:

— Fome... Eu tenho fome... Eu quero o garoto.

A névoa partiu-se, esvoaçando até o ponto em que a criatura se tornara não apenas um borrão mas sim algo palpável. A figura saltou das sombras, a saliva percorria as grandes presas como um veneno de réptil em direção ao solo. Sua cabeça, um crânio de fera cinza e grotesco era marcada pelos contornos disformes, os olhos eram negros como uma imensidão de escuridão. A criatura deslocava seus grandes braços humanoides, desproporcionais ao restante do corpo, na direção dos garotos. Os oito espinhos em suas costas pareciam chifres gigantescos de touro e suas garras afiadas e maciças não pareciam com qualquer animal que já tenha passado pelo mundo nos últimos milhares de anos.

Me dá o garoto... Eu quero o garoto! — Dizia a criatura liberando um hálito assombroso que instantaneamente lembrou a Miguel o cheiro de morte no ar.

Miguel sentiu suas pernas tremerem e seus joelhos se dobrarem em agonia, mas Aghi continuava ali parado como uma estátua de pedra. Firme, o pequeno garoto encarava a fera como uma leoa encara um animal que ameaça sua cria. Absolutamente não era Miguel o alvo, era Aghi.


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Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora