59. Estrada Parte II

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O velho, Opala preto seguia seu caminho para fora da Cidade Cinza, com Aghi no banco ao lado do motorista, preocupado com seu amigo abandonado naquele loteamento deserto. Miguel morreu realmente? Ele ainda poderia ser resgatado? As dúvidas tomavam a mente do garoto.

O motorista, estranhamente satisfeito, não parecia se incomodar com a presença de seu "passageiro", Aghi podia fitar perfeitamente o zigue-zague das linhas que costuravam a lateral da boca daquele homem sorridente. Não parecia um Carniçal, apesar de conhecer vários que se apropriavam de carapaças humanas, nenhuma presença rondava aquele ser.

O tal Alfredo, era um homem comum, no limite que a palavra pode ter. Afinal, nenhum ser humano poderia resistir a quantidade de golpes infligidos por Miguel, que naquele momento detinha uma força capaz de contrapor o Guardião Santo. Outra estranheza daquele ser, era o fato de que em poucos instantes nenhum dos ferimentos que lhe foram causados existiam, se não fossem os vestígios de sangue em sua roupa, ele pareceria perfeitamente bem.

Em alguns minutos, o carro deixou a Cidade Cinza, estavam em uma via pavimentada cercada por nada mais que terra e terrenos desmatados.

— Então, garoto. Ouvi dizer que você sabe o nome de Deus, é por isso que essas coisas querem você, correto?

Aghi pronunciou o nome de Deus, em uma tentativa de testar alguma reação por parte de seu sequestrador, mas Alfredo em nada se abalou, diferente de Miguel, ele sequer ouviu um ruído.

— Você disse alguma coisa? Só vejo sua boca se movendo.

Aghi abaixou a cabeça, refletiu um pouco mais e então abordou o homem:

— Quem é você? O que você quer comigo?

— Oras, eu sou o Alfredo. Estamos apenas dando um passeio divertido antes de te entregar para aquelas coisas rastejantes, você sabe, Carniçais.

— Você é humano. Eu sinto isso, mas não é um homem comum, é como se você carregasse algo, como se... alguma coisa prende você no mundo, não uma corrente espiritual, algo mais incerto.

Alfredo sorriu, um sorriso menos sarcástico e mais contemplativo.

— É uma maldição ou benção. Não sei ao certo quando começou, mas por algum motivo eu não posso morrer até achar alguém que me mate do jeito certo. Pra falar a verdade, minha memória não é das melhores, sabe? Eu olho pra mim e penso, quantos anos eu tenho? Mil, dois mil, três mil? Não me lembro, é como se só me lembrasse das coisas importantes.

— Que coisas importantes?

— Bem, eu não preciso comer ou beber pra sobreviver, a comida não tem gosto ou o álcool sequer pode me embriagar. Não lembro um gosto de um bife, só lembro coisas interessantes. Por exemplo, antes de te encontrar matei uns caras, me lembro da cara de medo deles, me recordo do sangue quente, enfim, só me lembro das coisas relevantes.

Aghi estremeceu diante da frieza daquele homem, estaria ele brincando? Dificilmente, seus olhos não tinham culpa, todas as pessoas que o garoto encontrou na vida, de alguma forma tinham que carregar seus erros. Miguel, por exemplo, seus olhos carregavam a saudade da mãe e arrependimento pelas coisas pequenas de sua vida.

Sofia, Isabel, Senhor Todorov, todos de alguma forma, tinham o peso de algum arrependimento ainda que pequeno, possuiam medos, dúvidas, um certo receio ainda que incorreto de suas vidas. As pessoas têm sentimentos, alegrias, tristezas, amores e um mundo de incertezas ao alcance de seus olhares.

Não aquele homem.

Era um vaso sem água, uma tela em branco, ou pior, em vermelho.

— Você não precisa ser assim, Alfredo. Seu lado humano ainda existe aí dentro, todos podem se arrepender de suas escolhas.

Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora