61. Estrada Parte IV

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A tontura, a breve falta de uma direção e o enjoo, aturdiram a mente de Aghi, que mal conseguia enxergar qualquer coisa quando despertou, após o duro o golpe que levou na cabeça. O corte feito pelo painel do carro estava lá, e um pouco de dor também, nada que ele não pudesse suportar.

Estava sentado em uma cadeira de ferro, pequena e muito enferrujada, seus braços e pernas estavam amarrados de forma débil, por inexperiência de quem o atou ou por inteligência de alguém que sabia que um nó apertado atrapalharia sua circulação enquanto estava desmaiado.

Gradualmente a visão turva se habituou ao local em que estava, era escuro e úmido, amplo e vazio, uma espécie de galpão abandonado. Notou antigas manchas de sangue no piso e parede, e logo observou que, além de algumas poucas prateleiras de ferro de tamanho razoável, existia no velho armazém alguns ganchos em uma espécie de varal de carne.

Não demorou para que o garoto percebesse a estranha e grotesca carcaça de algum animal, pendurado pelo grosso e firme gancho de açougue, seus restos, apenas ossos, confirmavam o isolamento daquela instalação, o local era um frigorífico industrial. A julgar pelo buraco na telha, que possibilitava a constatação de que era noite, e também o estado lastimável do espaço, foi possível deduzir que o lugar foi abandonado há muito tempo.

Na sua frente, a única coisa familiar era o doentio sorriso de Alfredo, agachado bem a sua frente.

— Bom dia, flor do dia! Não vai acreditar, mas você apagou pra valer, achei que tinha te matado, imagina! Seria um desperdício de tempo inacreditável, aqueles caras podres não me deixariam em paz. Que bom que você acordou, amiguinho.

— Que lugar é esse, Alfredo? Por que você me trouxe aqui?— Aghi piscava tentando se adaptar a luz da única lâmpada, pendurada em uma fiação alongada que rotacionava livremente.

— Direto ao ponto, gosto disso! Esse lugar maravilhoso fica fora da cidade, foi construído bem isoladamente para evitar as visitas dos fiscais sanitários, aqui funcionava um armazém para carnes, um estabelecimento de pequeno porte. Segundo nosso bom amigo, Arae o mestiço, o local foi fechado quando descobriram a qualidade do produto vendido aqui. No início o dono vendia carne de cavalo como se fosse boi, até que um dia ele fez uma inusitada parceria com a máfia e começou a aproveitar um outro tipo de carne mais... como posso dizer? Acho que não existe uma forma de suavizar isso: ele triturava carne humana.

Aghi fez uma feição de asco e indignação, mas não se surpreendeu com espontaneidade de Alfredo, já estava se acostumando a falta de humanidade daquele homem.

— Pois é, o negócio estava indo bem, mas algum funcionário idiota deu com a língua nos dentes e tudo caiu por terra. Fecharam o galpão e a maior parte dos envolvidos cometeu suicídio ou foi assassinada pelos mafiosos, por isso dizem que esse lugar é amaldiçoado.

Um trovão fez um estrondo e ajudou a iluminar o lugar, uma tempestade se aproximava.

— A outra pergunta, te trouxe aqui só pela nostalgia que esse tipo de lugar me traz. Você ainda tem algum tempo se quiser, pode tentar me dizer que Deus me ama e que você enxerga uma ponta de bondade nos meus olhos...

— Não. Você não é humano, Alfredo.

— Agora sim, esse é o meu garoto. Começou a entender como tudo funciona.

Aghi balançou a cabeça e encarou os próprios calçados, enquanto refletia sobre o ser amaldiçoado a sua frente. Pensou bem ao proferir suas próximas palavras:

— Costumava acompanhar o senhor Todorov na sua ida semanal ao mercado da cidade, um dia encontramos um cachorro latindo e correndo atrás das pessoas, estava fora de si. Perguntei ao senhor Todorov qual era o problema do animal, ele me respondeu que o cachorro estava muito doente da cabeça e que os donos não tiveram coragem de sacrificá-lo, apenas o soltaram com os vira-latas da pequena cidade.

— Gosto de uma boa história de animais. Obviamente eu sou o cachorro louco, certo?

Aghi ignorou e prosseguiu:

— Eu disse: por que não o levam ao veterinário e curam o cachorro? E, ele me respondeu que o cão já estava morto, ele apenas não tinha percebido isso. Ele já não se aproximava de outros animais, já não se comportava como um cachorro, apenas sofria e causava sofrimento. Chorei na semana seguinte pensando nele, e pensei que poderia levar comida e tentar me aproximar dele, suavizar seu sofrimento, mas o senhor Todorov me proibiu. Algum tempo depois o cachorro sumiu da cidade, ele morreu sozinho ou algum morador deu fim a sua vida.

Alfredo franziu as sobrancelhas e sorriu despretensiosamente:

— Bela história, garoto. Vou anotar para contar antes de matar alguém.

Aghi prosseguiu:

— Você ainda não entendeu, quem fez isso com você te desprezou ao ponto de ignorar sua vida. Ele reduziu você a uma carcaça que anda, por isso você se sente bem aqui nesse açougue: você está tão morto quanto esse local.

O amaldiçoado suspirou fundo e se ergueu, pegou a facão e o desembainhou.

— Sabe, para uma criança, às vezes você fala como um adulto.

Ele cravou com toda força o facão no chão, o velho piso liso do armazém cedeu e a lâmina ficou em pé, cravada a dois metros de Aghi.

— É aqui que nossa jornada termina, rapaz. Vou lá fora esperar nossos amigos, deixarei aqui esse facão, se você quiser pode tentar se esgueirar até ele e tentar se libertar. Se for sua escolha fazer isso, após estar livre você tem três opções: A primeira é fugir pelos fundos e correr pela estrada no meio da chuva, a segunda é se esconder em uma antiga casa abandonada que servia de habitação para o dono dessa bela empresa. A última é se armar com esse facão e esperar o que quer seja que vai entrar aqui, por aquela porta.

Aghi tentava captar alguma mensagem subliminar nas frases de Alfredo, isso soava como mais um de seus doentios jogos.

— Se tudo correr bem, vai ser um Carniçal que irá te levar até o tal Alfa, se tudo correr mal, quem vai entrar aqui sou eu, para te matar. Sabe como é, esses caras são bem covardes na hora de tomar iniciativa em uma guerra, e acabam deixando o serviço sujo para os outros.

O amaldiçoado deu as costas para Aghi e começou a caminhar na direção da velha porta de aço, se deteve e olhou novamente para seu refém.

— Só mais uma coisa.— Ele tirou o celular de Aghi de seu bolso — eu achei isso aqui, quando você estava desmaiado, não vamos querer ninguém atrapalhando, certo?

Ele deixou o aparelho cair no chão e pisou com toda força, estilhaçando-o em vários pedaços.

— Não! — Gritou, Aghi.

Aquela era sua única forma de contatar Majora e pedir socorro, agora estava sozinho e contra todas as probabilidades de escapar daquele covil.

— Adeus, Agnathi ou até breve!

O homem deixou o local, e um segundo relâmpago cortou os céus, era o início da chuva que levemente tomava os céus.

Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora