62. Estrada Parte V

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O estranho homem saiu do armazém e puxou a porta de ferro para baixo, em um solavanco firme e único, isolou sua presa no pequeno frigorífico e no avançar daquela nublada madrugada, contemplou o céu.

Apesar da forte chuva que se aproximava, naquele lugar tão isolado da Cidade Cinza, ele contemplou as estrelas, a despeito do avançar das eras, que pretensamente presenciou e de sua falta de memória, o céu era uma constante: os astros, as nuvens, a lua, estavam lá ontem, estão hoje e estarão amanhã.

E o homem amaldiçoado também.

Fadado ao constante infinito da vida, condenado ao instinto mais puro e comum da humanidade de cravar uma lâmina em seus semelhantes. Os homens não são como os animais, não como os outros os animais, eles arquitetam sua selvageria e isso era maravilhosamente cômico.

Quando tudo isso começou? Quando ele deixou de ser um mero homem? Sua mente não o respondia, era tão nublada quanto o céu, recordações tão inconstantes quanto as gotas que estavam caindo de lá. Traços de alguns rostos, perdidos em um dia distante que talvez não tenha existido, uma mulher estava lá, um homem estava lá e outra coisa estava lá também.

O garoto o comparou a um cão doente que não sabia de sua própria mortalidade, contudo, ele não era assim, era pior. Em algum momento de sua longa existência ele foi escolhido, foi o eleito da humanidade para demonstrar o infinito ciclo de violência, ao longo dos séculos presenciou o surgimento de diversas formas para exterminar outras pessoas, só podia ser um dom. Para que mais alguém se tornaria imortal?

Qual foi a arma mais devastadora que presenciou? Espadas? Machados? Bombas? Sentia-se alegre ao se comparar a uma bomba, elas não fazem acepção de pessoas, apenas matam, nem sempre no momento exato que são lançadas, às vezes deixam sequelas, feridas, doenças cancerígenas. Elas provavelmente serão a última jogada, o auge do rancor do mundo, o fim em cores, o flash final.

O ciclo da violência, sim, o ciclo. Não acabará enquanto um ser humano respirar no ominoso mundo herdado de Deus, e ao que tudo indicava, no derradeiro dia, na última bomba que cortara o céu, pela derradeira vez, ele estará lá aguardando ansioso. Enfim o jogo vai terminar, o amaldiçoado será o vencedor em um tabuleiro sem peças. Em um mundo de Carniçais e humanos, o vencedor será ele.

Seus pensamentos foram cortados pelo barulho de uma cadeira de ferro que tombou no chão com força, o garoto enfim se decidira. Sorriu, ao imaginar a luta que estava ocorrendo atrás dele para que o pequeno pudesse se soltar. E depois? Lutaria ou fugiria? Seja qual for a resposta, era agradável pensar que o menino não era tão ingênuo e fraco quanto parecia, estava disposto a resistir até o fim.

E não demoraria muito, escondido em meio as trevas do campo, que separava aquele lugar da civilização, uma grotesca criatura albina se arrastava com o corpo arqueado, como uma fera selvagem. Tinha o tamanho de um homem, era magro e vestia alguns poucos trapos que quase não escondiam muito daquele pútrido corpo de Carniçal sem olhos.

— Mas que...Nossa! Eu sempre esqueço como vocês são feios, digo, eu não sou bonito, mas quem criou a forma original de vocês não brincou em serviço! Você parece o resultado de um cruzamento de ratazana branca com réptil... Argh!

A criatura engatinhou desengonçadamente em sua direção, e aquela voz rasgou sua mente:

— Onde está o garoto? Você o matou?— O Amaldiçoado odiava essa forma de se comunicar, usada por tais criaturas.

— Relaxa, ele tá lá dentro. Ei, cadê o Arae? Aquele puto é tão covarde que não quer encontrar o garoto?

— Ele está ocupado, o Alfa me mandou...

— Certo, certo, entendi. Bom, o pacote tá lá atrás, intacto. Talvez, não muito intacto, eu acertei ele com força, desmaiou durante o dia inteiro. Sério, foram horas! O importante é que ele tá vivo, certo? Você vai levá-lo agora?

A criatura abriu a boca, revelando sua voz:

— Não... Você...matar...

O Amaldiçoado suspirou.

— Mudaram o plano? O que aconteceu?

— O Guardião desapareceu, sua presença deixou a cidade de vez. O menino foi abandonado, não tem mais valor.

— O cara barbudo, vi quando ele soltou faíscas pelo olho e tombou sem vida. O garoto não tem mais valor para o Alfa, heim. Interessante... Sendo assim, você pode ir embora, meu amigo feio, considere a tarefa feita.

— Não... testemunha... Corpo...

O homem da boca costurada deduziu as escolhas tomadas pelos Carniçais: O jogo estava praticamente ganho, não se envolveram diretamente em um confronto com o outro lado, e por uma sorte inacreditável assistiram as duas peças mais importantes tombarem no mesmo dia: o Guardião e o Ômega. Só faltava uma última tarefa.

Matar o garoto diretamente não seria a escolha mais acertada, o que impediria um retorno do Guardião? O que deteria outro escolhido, como o garoto, de surgir no mundo? A última pergunta não dependia da não interferência deles, sabe lá quantos jovens ou adultos certos de sua espiritualidade existem no mundo.

— Vou matar o garoto, e não se preocupe, você terá o corpo dele em instantes.

O homem da boca costurada se agachou e segurou firme a porta de ferro, a empurrou para cima e constatou o que imaginara: dentro do armazém estava uma cadeira tombada, uma corda solta e um facão solto no chão.

— O bostinha é sagaz, escapou pelos fundos, mas deixou o facão aqui. Nunca vou entender essa geração anti-violência.

O Carniçal arqueou a cabeça para o lado, emitiu um pequeno ruído de desaprovação e invadiu novamente a mente do Amaldiçoado com sua voz:

— Você perdeu o garoto?

O homem, imerso em sua satisfação, olhou para a estrada ao lado do galpão e deduziu que o garoto não correria na direção do asfalto, ele não arriscaria ser pego tão rápido. Era certo que ele se esconderia, voltou-se então para o único esconderijo possível naquele imenso lugar aberto: A velha casa abandonada.

A chuva, enfim, caiu com mais intensidade. Trovões cortavam a madrugada, com pancadas intensas de gotas afiadas que tocavam o solo, em breve a chuva acabaria e o sol nasceria no horizonte trazendo a manhã, mas não ainda, a noite ainda estava lá, e ela só tinha um dono naquele momento.

— Melhor, eu comecei uma caçada, e adivinha só? O prêmio vai ser de vocês.

— Eu vou com você...

— Não, não, não, meu amigo feioso. Essa brincadeira deve ter apenas dois participantes, você vai ficar longe daqui ou corto sua garganta. O cadáver é de vocês, mas o vivo é meu. Esse cão morto precisa brincar.

O Carniçal parou por um instante, era nítido que não queria um combate. Resmungou algo sussurrante e optou por concordar. O homem segurou o facão com determinação, enquanto a besta se esgueirava para as trevas.

Era o início de uma caçada.

*****

Esse foi o penúltimo capítulo de Ômega,

obrigado por chegar até aqui, um imenso abraço e até domingo!

Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora