13.Morte Parte II

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No momento em que suas mãos tomadas de indignação tocaram a mesa, tudo estremeceu, o bolo estava estático a um metro e meio do chão. A expressão de sua família estava congelada em um momento de espanto. Os tacos do chão, tão lisos e perpendiculares, tomaram formas curvas enquanto dançavam sem direção. O tempo tomou outra proporção e tudo parecia girar ao redor de Miguel, em um loop infinito, uma luz incandescente como o sol entrando em uma caverna escura tomou a visão de Miguel em uma explosão única. Todos os seus sentidos ficaram abalados com aquela exposição e em sua breve cegueira não conseguia sequer sentir o chão.

Quando abriu os olhos, sentiu aos poucos o efeito atordoante passar. Notou que seu corpo flutuava sem direção em uma imensidão branca e vazia, era o nada, ou talvez fosse o tudo. A sensação que sentiu era de que seu corpo não tinha ossos, e que aquele lugar — uma imensidão de nada com coisa alguma — não possuía gravidade aparente, seu corpo simplesmente flutuava. Não saberia dizer se estava em movimento ou parado.

A morte seria isso? Uma imensidão de nada, um lugar para coisas sem valor vagarem no esquecimento, seria o limbo? Outras questões tomavam conta de seus pensamentos, uma delas era: ele agora era uma alma? Aquilo poderia ser uma representação de seu antigo corpo criado por seu cérebro? Ele ainda tinha cérebro? Tantas perguntas eram geradas a partir de uma pergunta simples: onde estou? Resolveu não pensar tanto. Afinal, se ele estava morto nada mais importava contando que ele não estivesse em algum tipo de inferno. E foi quando começou a ser perguntar se aquilo era o inferno, mas pensou que poderia ser o céu. E então começou a se questionar se algo que ele tenha feito na terra fosse digno de um céu. E lá estavam elas, as perguntas, milhares delas. Por mais que tenta-se seu cérebro não parava de formular questionamentos.

Chegou a conclusão de que nada daquilo o ajudaria a curto prazo. Ele precisa entender e controlar seu corpo antes de qualquer questionamento filosófico. Tentou mover os dedos, fazendo movimentos de encontro a palma de sua mão, indo do polegar ao dedo mínimo. Consegui, ele pensou. Aos poucos testou as pernas e braços e se sentiu aliviado ao perceber que dominava todos os movimentos do corpo.

A medida em que controlava seus movimentos percebeu que seu corpo flutuava em direção ao norte, não que ele pudesse indicar o norte naquele lugar, mas optou por acreditar que era essa direção que seu corpo seguira.

Após algum tempo vagando pelo infinito avistou algo bem longe dali, e percebeu que seu corpo flutuava naquela direção. Sentiu medo pela primeira vez, poderia ser qualquer coisa. Aos poucos a imagem tomava forma de quatro vultos humanoides. A medida que se aproximava notou que estava flutuando sobre as criaturas a uma distância razoável, mas que não podia ser calculada devido a falta de referência para criar um escala aceitável.

Cada criatura possuía quatro faces, três de animais: grandes felinos, bovinos e aves. E aparentemente ele notou que atrás de suas cabeças onde deveria ter uma nuca, existia uma face similar ao rosto de uma pessoa. As grandes asas que as criaturas possuíam escondiam seus corpos nus, e outro par se erguia em direção ao topo de suas cabeças, pensou ter visto palmas de mãos humanas sobre essas asas. Seus joelhos estavam dobrados em um tablado de marfim, e as quatro criaturas se prostravam em orações feitas em um dialeto incompreensível. Sem parar por um instante sequer, pareciam ignorar sua presença.

Ao contrário do Carniçal, que trazia consigo o cheiro de assassinato e dor, essas criaturas pareciam magníficas. Apenas olha-las fazia com que o coração de Miguel estremecesse de alegria. E pela primeira vez em muito tempo ele pode sentir paz. Ainda que não pudesse entender o dialeto deles, percebeu que o som emitido por esses seres soava como um canto celestial. Como um cântico de louvor e súplica.

Aos poucos a imagem das criaturas do tablado, o cântico delas e toda aquela paz desapareceu, deixando apenas a imensidão branca de um nada infinito. Miguel gostaria que as criaturas não fossem embora, a imagem bestial delas em nada o assustava. De alguma forma aquela aparência até transmitia paz, e o cântico ainda que brevemente limpou sua mente de pensamentos negativos e do medo latente da morte.

Assim, seu corpo flutuou rumo ao nada por mais algumas horas. Seriam realmente horas? Existe alguma forma de contagem de tempo baseada em horas naquele lugar? Perguntou-se enquanto questionava também se a Terra ainda girava e se o Sol ainda brilhava.


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Le Voyage

Ô Mort, vieux capitaine, il est temps ! levons l'ancre!

Ce pays nous ennuie, ô Mort ! Appareillons!

Si le ciel et la mer sont noirs comme de l'encre,

Nos coeurs que tu connais sont remplis de rayons!



Verse-nous ton poison pour qu'il nous réconforte !

Nous voulons, tant ce feu nous brûle le cerveau,

Plonger au fond du gouffre, Enfer ou Ciel, qu'importe?

Au fond de l'Inconnu pour trouver du nouveau*

Charles BAUDELAIRE (França, 1821-1867)


* Tradução


Oh, Morte, velha capitã, já é tempo! Levantemos âncora!

Este país nos enfastia, oh, Morte! Zarpemos!

Se o céu e o mar são negros como o nanquim,

Nossos corações, que tu conheces, são plenos de luz!



Verte sobre nós o teu veneno, que ele nos reconforta!

Queremos, tanto esse fogo nos consome o espírito,

mergulhar no fundo do golfo, Inferno ou Céu, o que importa?

No fundo do Desconhecido para encontrar o novo!


Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora