56. Guardião Parte VI

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Em alguns momentos nossos olhos não se acostumam com a luz de imediato, passamos tanto tempo em meio à escuridão que nossas retinas não aceitam a iluminação, apesar de não saber como colocar esse pensamento em prática, na realidade Miguel sabia como era a sensação de uma luz invadindo seu quarto escuro e o obrigando a acordar em um sobressalto.

Foi assim quando despertou no chão de terra do terreno abandonado, sem caverna, sem Carniçais e sem ponte. Tudo que lhe trazia uma lembrança daquele lugar sombrio era o amigo deitado ao seu lado e o homem de jaqueta e barba por fazer, o Guardião Santo no corpo de alguém cujo nome não importava mais.

Ele cutucou Aghi que em um momento de susto, pulou do chão, como se estivesse prestes a ser devorado por uma daquelas figuras do fosso.

— Cadê o guardião? — Disse Aghi assustado.

— Bem ali. — Apontou o jovem.

O Guardião Santo parecia distante em seus pensamentos enquanto contemplava o local que há pouco tempo era o portal para o covil dos Carniçais. Teria ele varrido todas aquelas criaturas para o inferno? Teria travado uma batalha para tirar os garotos daquele lugar? O fato era que de alguma forma aquele ser Celestial salvara Aghi e Miguel no último instante, e para fazer isso ele teria um poder imensurável, mesmo com toda a sua força o que Miguel conseguiu foi dar poucos passos naquela ponte.

Aghi aproximou-se dele, em passos tímidos , a vergonha e tristeza por não conseguir estavam estampadas em sua cara.

— Me perdoa, Guardião. Eu achei que conseguiria.

Ele manteve o olhar firme na direção do menino por alguns instantes, era perceptível certo desapontamento naquela feição tão incongruente com seu portador que pouco demonstrava sentimentos.

— A culpa não é só sua, Agnathi. A infância fortalece sua fé, porém, aumenta seu medo.

Aghi curvou a cabeça em sinal de desânimo.

— Não se preocupe Agnathi Galardoni, dessa vez você vai conseguir.

Aghi deu um passo para trás, o medo por um momento tomou o olhar daquele garoto tão determinado. Aquele lugar era tão perturbador, que o assustara como os Carniçais nunca o fizeram.

— Sinto dúvida em você, Agnathi.

— Eu penso que... não vou conseguir, Guardião. Estou confuso...

O Guardião Santo colocou a mão no ombro do garoto com determinação.

— Você precisa fazer isso, nem que eu precise te guiar até lá. Você vai atravessar e fechar aquela passagem.

Miguel assustado com a firmeza do homem correu na direção deles com o punho cerrado.

— Não coloca a mão nesse garoto, cara...

Antes que pudesse alcançá-los sentiu seu corpo ir ao encontro do chão em um movimento tão brusco quanto uma mudança na gravidade do mundo, caiu de joelhos a pouco mais de um metro do ser tão evidentemente superior.

— Não se envolva, Miguel. Estou farto de suas interferências, meu jovem. Fique no chão, é o lugar mais adequado para você.

— Por favor não machuca ele. — Implorava, Aghi.

— Ele é o motivo de suas incertezas, Agnathi. Sempre arrogante, sempre com esse temperamento volátil, não acredita em nada, apenas nele mesmo. Tão presunçoso ao ponto de pensar que poderia me tocar.

Miguel sentiu uma força muito maior, ao que lhe afligiu na caverna, não era carregada daquele sentimento negativo de outrora, mas possuía muita intensidade.

— Você deveria protegê-lo... Ele vai morrer se voltar lá...

Miguel mal podia pronunciar algumas palavras, era como carregar um peso inimaginável, na sua frente a figura imponente daquele homem que mais parecia uma criatura mítica, carregada da mais pura postura impecável de alguém que está prestes a esmagar uma formiga.

— Se Agnathi não realizar a passagem agora, ele sofrerá nas mãos de alguém que você não pode derrotar, sua arrogância é tão grande que você não consegue me dar ouvidos?

— Você disse que ele morreria... do outro lado da ponte...

Aghi observava aflito o embate entre o ser que ele tanto esperou e seu melhor amigo.

— Ele sabe que sacrifícios são necessários, quem não entende isso é você, Miguel Arcanjo Muniz. Nada mudou, não é mesmo? Você viu o que existe além deste mundo, e mesmo assim continua sendo aquele jovem prepotente que tem medo da verdade. Vi isso nos seus olhos quando nos encontramos anteriormente, a forma como você fugiu do conhecimento que eu lhe ofereci, as chamas com a verdade que você rejeitou.

Começou a pensar que o Guardião Santo poderia ser a voz feminina que o recebera no outro mundo, ela lhe ofereceu conhecimento e após a experiência de absorver inúmeras sensações e sentimentos, ele sucumbiu e negou tudo aquilo que ela oferecera. Contudo, em momento algum, aquela voz tão educada lhe mostrou qualquer chama.

Olhou nos olhos dele, tentava manter a cabeça erguida, algo naquele olhar, algo era familiar. Eram cerrados, profundos e distantes, lembrou-se também da caverna e da luz azul invocada na mão do Guardião. Ele já tinha visto aquilo antes?

Sim, tinha se esquecido, contudo era impossível não lembrar, o fogo azul, o medo, e claro, lembrou da serpente.

O Guardião Santo era o velho de semblante vazio no altar em chamas, de tudo que encontrara no outro mundo aquilo foi o que mais o aterrorizou.

— Você é o velho... o velho da serpente...

— Ha-elyonim! — Proferiu o Guardião Santo. — Nem tudo que assusta os homens é maligno, meu jovem. A falta de controle, vocês não suportam isso, não? Naquele dia você foi covarde e egoísta, e agora quer que o garoto seja essa representação cômica dos medos humanos.

O Guardião estalou os dedos e em um instante a corrente espiritual de Miguel apareceu, estava cinza como a poluição que envolvia as fábricas da cidade, as rachaduras eram maiores que outrora e ela não girava mais ao redor de seu corpo.

Aghi sem entender o diálogo buscava uma forma de parar o conflito:

— Por favor, solta ele, Guardião!

— É isso que você quer, Miguel? Se soltá-lo você vai deixar a criança em paz? Vai recolher o que sobrou da sua alma e ir para casa ou serei obrigado a acabar com sua existência aqui mesmo?

O momento em questão fazia com que ele mal pudesse falar, reuniu toda força que ainda lhe restava e agarrou sua corrente espiritual com os dedos trêmulos da mão direita. Sentiu a sutileza do pouco de  vida que ainda lhe restava, o breve e tênue limiar da alma e o corpo humano.

— Não faça isso, não seja um tolo. — Advertiu o Guardião.

— Vai... se... ferrar...

Com um urro de dor Miguel apertou a luz que o cercava e a rasgou com toda força que ainda lhe restava, em um instante sua corrente espiritual foi estilhaçada e deixou de existir.

Agora nada segurava sua alma no mundo.


Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora