45. Carta

141 151 30
                                    

Queridos filhos, meu garoto Miguel e minha linda Sofia

Ops! Esta imagem não segue as nossas directrizes de conteúdo. Para continuares a publicar, por favor, remova-a ou carrega uma imagem diferente.

Queridos filhos, meu garoto Miguel e minha linda Sofia.

Me sentindo nostálgico pela doença, que corrói meu corpo, resolvi escrever essa carta pedindo perdão por erros do meu passado, vocês ainda não existiam, mas acredito que é melhor confessar que morrer sem admitir minhas falhas.

Tenho certeza que minha querida Joana não deixará que vocês leiam isto enquanto ela estiver viva, espero que seja por algumas décadas, ainda que sem mim. Vou implorar para que ela não jogue fora e quando vocês tiverem idade para entender espero que leiam de coração aberto.

Servi o exército durante alguns anos, a princípio minha função era simples: organizava alguns papéis de afastamento e aposentadoria, bem como alguns pedidos de reserva, transcrevia dados e colava fotos de pessoas que nunca precisariam pisar em um quartel. Fui muito feliz, o trabalho era tranquilo e me divertia vendo jovens morrendo de medo de precisar vestir uma farda.

Obviamente minha eficiência chamou a atenção de meu superior, um general que não vou dizer o nome, pois se eu me arrependo dos meus pecados por que apontaria os de outra pessoa, não? E assim, fui transferido para aquele porão escuro onde pessoas chegavam e muitas vezes não saíam. Durante meses tudo que fazia era ficar em uma sala catalogando às pessoas que chegavam para interrogatório, sabia o que acontecia lá pelos gritos e lágrimas, mas como bom soldado não fazia perguntas.

Não recusei quando fui convidado para participar do grupo que fazia interrogatórios. As pessoas se perguntam como nascem os torturadores, a resposta é simples: A primeira vez que machucamos uma pessoa, nós não dormimos, alguns choram e outros vomitam. Na segunda noite mentimos para nós mesmos dizendo que criminosos são apenas pessoas sem alma e que é bobagem sofrer por isso. Quando chega a terceira vez, estamos anestesiados, comentamos técnicas, zombamos do sofrimento alheio e aquilo parece um trabalho comum com horário, salário e uniforme.

Estimo que tenha torturado cerca de 16 homens, nunca precisei torturar uma mulher e dava graças a Deus por isso, pois a tortura em homens era mais física e a tortura em mulheres era mais psicológica.

Tudo corria com a grotesca normalidade de outros dias, até que trouxeram um rapaz um tanto quanto teimoso, hoje penso que a teimosia dele me lembra muito a sua, Miguel — ainda que você seja apenas um garoto de 9 anos. — A missão parecia simples: descobrir o nome do chefe dele.

Não foi nada simples, o rapaz idolatrava seu líder com a ingenuidade da admiração e fidelidade que os jovens possuem, uma semana machucando aquele jovem e ele não me contou absolutamente nada. Além de admirar a resistência dele, acabei me afeiçoando ao prisioneiro, torcíamos para o mesmo time, gostávamos das mesmas músicas e com excessão dos livros políticos, gostávamos das mesmas histórias.

Apesar disso, trabalho é trabalho e quando descobri que ele tinha esposa e filho tudo ficou mais fácil. Coloquei fotos deles sobre uma mesa e ele ficou branco, pensou que não descobriríamos, entretanto, sempre descobríamos. Era nosso serviço.

Ele hesitou, chorou e por fim balbuciou o nome do homem que o liderava, desde que eu desse minha palavra de que não encostaríamos em sua família e dei minha palavra como se isso dependesse de mim, claro, não dependia.

Recebi o carinho e apoio de meus camaradas, fui parabenizado e voltei triunfante para minha casa onde minha mãe nem sequer sabia sobre meu trabalho. Tive uma noite comum, saí com meus amigos civis, bebemos, conhecemos algumas garotas e nos divertimos como todos os outros jovens. Não tive pesadelos ou ressentimentos quando coloquei minha cabeça no travesseiro naquela madrugada.

A agradável noite virou dia, quando cheguei no trabalho me deparei com algo que me aterrorizou: a esposa e o filho do rapaz que interroguei estavam em uma sala aguardando meu superior. Lembrei da promessa e corri para o escritório do general.

Disse ao homem que tinha conseguido o nome e não precisávamos interrogar mais ninguém, contudo, com um desprezo ele me informou que o nome do chefe do meu prisioneiro pertencia ao irmão da esposa dele, era o cunhado dele. O general afirmou que a mulher saberia onde aquele grupo se escondia.

Na tentativa de tentar impedir que alguém a torturasse me ofereci para continuar interrogando o rapaz até que ele me informasse a localização de seu grupo. O general disse com um sorriso frio que ninguém nunca mais falaria com aquele rapaz, ou seja, ele estava morto. Deixei o local sabendo as coisas terríveis que fariam com aquela moça e seu filho e nunca mais voltei ao exército. Meu superior me chamou de fraco e cuspiu no chão, porém aceitou minha dispensa na semana seguinte.

À medida que envelheci fui entender as consequências do que fiz, tentei pagar por meus crimes, mas eles não eram crimes, pois ninguém nunca aceitou minhas confissões. Tive uma vida boa, mesmo sem merecer: tive uma esposa maravilhosa e filhos lindos que me amam.

Gostaria de dizer que o amor de vocês vai resistir à minha confissão como o amor da mãe de vocês resistiu, quero dizer, Sofia você é quase um bebê e talvez não se lembre do meu rosto depois que a doença me levar, sei que não vai fazer tanta diferença para você se o pai foi bom ou não, leve meu amor com você.

Já você Miguel, julgo que não vai me perdoar, apesar de muito jovem posso ver nos seus olhos que será um homem justo, porém homens assim não perdoam torturadores, eles podem até conviver com um, mas aquela centelha de justiça não os deixam esquecer. Seja como for, deixo todo meu amor e espero que você seja parecido com sua mãe e que todo carinho e justiça dela te façam um adulto incrível.

Minha família, vocês são tudo para mim, e onde quer que Deus me leve estarei sempre pensando em vocês.

Rafael Muniz,

Cidade Cinza, setembro de algum ano que não mudou o mundo.

****

Obrigado pela leitura e uma ótima semana.

Aquele abraço!

Ômega - O Guardião Santo (Fantasia/Suspense/Sobrenatural)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora