Capítulo I - Lady V

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Rio de Janeiro, 1925

Era quase meia-noite. Bento caminhava apressado pela rua, mas sem correr ou esbaforir-se. Seus pés rolavam as ruas de pedra mal iluminadas da cidade até ter uma vista decente da Baía de Guanabara. Examinara o lugar e pôs os olhos na embarcação "Lady V", ancorada no cais. De lá, seguira até um moleque preto que empilhava caixas próximo ao navio que estava ao lado do Lady V e lhe pediu informações. O rapazinho entregara-lhe um bilhete e Bento franziu o cenho em desaprovação.

"Beco da Chaleira

 V"

Desacelerou o passo, mas manteve a preocupação. A uns quatro quarteirões dali estava o Beco da Chaleira, um bar extremamente mal frequentado, famoso por ficar aberto durante toda a madrugada e pelas constantes confusões que decorrem em suas mesas. O bar possui uma pequena estalagem em cima, usada com frequência para os casos extraconjugais dos homens que o frequentam.

Adentrara o bar e cumprimentou alguns colegas que conhecia. Homens brancos e pretos conversavam alto e riam despreocupados com suas doses de cachaça e lanches baratos, acompanhados das únicas mulheres no local – umas cinco ou seis prostitutas e/ou amantes dos fregueses. Bento olhava de um lado para o outro, sério, enquanto se dirigia até o balcão.

– O que tens pra hoje, Bento? – Perguntou o rapaz atrás do balcão, que secava um copo.

–  procurando uma moça, Silva.

– Aqui puteiro, não, Bento. Isso tu acha lá com Dona Bernadina.

– Não esse tipo de moça! Por acaso uma moça, tipo, bem madama mesmo, teve aqui?

– Teve sim, mocinha estrangeira. lá em um dos quartos. Veio hoje com uns europeu.

– Qual quarto?

– Nove. Mas prometi que não ia deixar macho nenhum passar nem perto daquela porta, Seu Bento.

– Pode, então, mandar chamar a moça?

Silva dirigira-se até a cozinha e pediu para que a senhora que faz a limpeza do lugar – e a comida – fosse chamar a garota, enquanto Bento esperava com uma dose de parati. A velha retornou acompanhada de uma garota magrinha e pequena, de cabelos castanhos e olhos azuis, assustada e agarrada ao xale velho que tinha por cima dos ombros.

– Nhá-Vitória? – Perguntou Bento, não reconhecendo a menina.

– Vitória! – Exclamou a menina, procedendo a falar em um idioma diferente que Bento não identificou.

– Quem é esta menina, Silva? – Perguntou Bento, ainda confuso.

Antes que Silva pudesse responder, uma voz feminina soou atrás de Bento:

– Creio que procuras por mim.

Ao virar-se, Bento deu de cara com uma moça em trajes masculinos – calças, camisa, terno, cinto de fivela, sobretudo preto e um chapéu que escondia seus cabelos. Bento prontamente a reconheceu.

– Nhá-Vitória, mas o que é isso!? – Indagou Bento, incrédulo.

– Esta é a minha criada, Sofia. Ela é alemã, não fala português. – Respondeu Vitória, fazendo sinal para que a velha levasse a menina de volta para o quarto.

– Que negócio é esse?

– Eu passo tanto tempo fora e é assim que me recebes?

– Desculpe-me, Nhá-Vitória, mas não achei que chegarias hoje. Deverias ter permanecido no navio até amanhecer.

Vitória riu rapidamente ao ver que Bento ainda lhe tratava antiquadamente por "Sinhá".

– Eu preferiria morrer do que passar mais um segundo naquele navio desgraçado. Enfim, eu ganho um abraço?

Bento amolecera e abraçou Vitória brevemente e com muito decoro, mas feliz por vê-la. Ela o levara até o fim do bar e os dois sentaram-se numa mesa afastada da barulheira.

– Achei que só chegarias daqui a uma semana, Nhá-Vitória.

– Um dos navios de meu tio estava de retorno para o Rio, decidi vir logo. Principalmente porque pude parar em Salvador e eu queria ver uns conhecidos lá.

– Perdoe-me se for rude, mas, precisavas estar vestida de homem assim?

– É extremamente desconfortável ficar de saias em um navio, Seu Bento. – riu – Além de perigoso. Eu não conhecia a tripulação e, convenhamos, é bem mais difícil abrir um cinto do que levantar uma saia.

repreendido, Nhá-Vitória! – Exclamou Bento, fazendo o sinal da cruz.

– O mundo como ele é. Além do mais, é melhor assim. E mulheres usam calças hoje em dia, Bento, é mais comum do que pensas. – riu.

Um breve silêncio formou-se entre eles, até que Bento o rompeu:

– Como andas, Nhá-Vitória?

– Muito bem! E tu?

– Muito triste pela morte do patrão, mas muito feliz pelo teu retorno. Aliás, meus pêsames.

– Obrigada, Bento. – suspirou – A morte de meu pai atingiu-me bastante. Há tempos não falava com ele, estávamos brigados.

– Eu sinto muito. Soube que o Doutor deixou uma carta pra ti antes de partir.

– Sim, será lida junto com o testamento. Espero, de coração, que ele tenha me perdoado.

– O Doutor te amava muito, Nhá-Vitória. Sempre que voltava da Europa passava dias falando sem parar de ti. Tinha muito orgulho, com certeza.

Vitória sorriu. Ficaram em silêncio mais uma vez, até que ela fez sinal para o garçom e pediu mais duas doses.

– E a Europa, Nhá-Vitória? O que fez por lá?

– Muita coisa, Bento! – Respondeu Vitória, entusiasmada, com um cigarro na boca prestes a acender. – Estudei, trabalhei, fui para a guerra, me apaixonei... Tudo o que uma moça tem direito!

– Pretendes ficar por aqui, no Rio?

– Bem, aparentemente papai deixou tudo para mim. Até os negócios. A menos que eu abra mão de minha parte, preciso ficar e cuidar de tudo.

– Não queria falar nada, não, mas... Seu Afonso ficara um tanto furioso quando soube que o Doutor deixaria tudo para ti.

– Eu me entendo com Tio Afonso depois. – riu – No mais, estou feliz por estar em casa. Levei uma vida bem agitada nos últimos anos. Será bom descansar sentada em um escritório para variar.

– Mas o que tanto fizeste na Europa, Nhá-Vitória?

– De tudo um pouco. – riu – Mas, principalmente, viajei. Muito. Não fiquei só na Europa, fui para a África, América do Norte e para alguns países do Oriente.

– Foi fazer o que nesses lugar doido?

– Meu trabalho, Bento. Sou arqueóloga!

– E o que é isso? – Perguntou Bento, parecendo envergonhado por não saber. – Achei que a senhorita fosse doutora!

– Tecnicamente eu sou. Mas, no caso, eu estudo... – Vitória parou e tentou encontrar palavras não muito complicadas para descrever seu trabalho – Eu estudo objetos e artefatos antigos. Bom, objetos não, ossos.

– Ossos? Tipo, de gente?

– De gente muito antiga, sim. – riu.

– Então, o Doutor mandou a filha pra Europa para estudar gente morta?

– Na verdade, ele me mandou pra estudar gente viva. Eu que preferi estudar as mortas.

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Castro e SouzaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora