Capítulo LX - Brisa

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Rio de Janeiro, 1926

"O "reveillon" que o Copacabana Palace offereceu hontem à sociedade carioca, constituiu a festa brilhante do anno findo. Os amplos salões do hotel registraram uma concorrencia sem precedentes. Mais de mil e quinhentas pessoas reuniram-se hontem no Copacabana. Até a hora de fechar os serviços desta pagina, as dansas decorriam animadamente, promettendo prolongarem-se até a manhã de hoje."

Vitória observava de sua porta o primeiro amanhecer do ano. Estava de roupão, fumando seu Lucky Strike matinal, quando o rapaz do jornal arremessou o periódico Correio da Manhã em sua porta. De maneira fria e impessoal que somente uma nota de jornal era capaz de fazer, pulou para a coluna sobre a vida social carioca. Sorriu ao correr brevemente os olhos pela primeira coluna de moda que Cláudia havia assumido no Correio - sob um pseudônimo vago e ambíguo para a dar a impressão de que era masculino -, mas seus olhos pararam na nota sobre a festa de Reveillon do Copacabana Palace. Banquetes, Festas, Falecimentos, um anúncio de creme para espinhas e uma propaganda de remédio para indigestão e findava-se a coluna de fofocas, sem nenhuma palavra sobre ela ou seu marido, que havia lhe deixado há quatro dias. Estava prestes as ler sobre o Décimo Quarto Congresso Comunista de Moscou ou algo envolvendo Lady Astor e socialistas ingleses quando viu que, do outro lado da rua, sua vizinha, Dona Edith, encarava-lhe sorrateiramente. Olhou para a casa ao lado da sua e viu que Dona Honorina estava, de bigudins no cabelo e cigarro na boca, olhando por uma fresta na cortina. A mesma coisa ocorria com Dona Perpedina e Dona Amandita, em suas respectivas janelas. Ziralda e Francisca, que eram empregadas domésticas começando seus dias, também espiavam por trás de arbustos. Enfurecidamente, Vitória jogou a bituca de cigarro no chão, pisou e entrou em casa batendo a porta.

- Não corte demais a franja, eu não sou Louise Brooks! - Exclamou Vitória. - Minha testa é grande, ficarei ridícula com uma tão curta.

- E eu não sou friseur, Vitória. - Retrucou Sofia, com a tesoura na mão.

- A palavra é cabeleireira, Sofia.

- Cabelher... - Tentou repetir Sofia.

- Leva-se no mínimo quinze anos para se aprender a pronunciar isso, querida. - suspirou - E eu sei, mas não posso ir a um salão. Aquelas mulheres estão ávidas para fofocar sobre a minha vida e eu não posso deixar.

- Achei que não se importasse com comentários a respeito da tua vida.

Vitória abaixou a cabeça e tornou a encarar o espelho da penteadeira. Estava cansada do assédio, das fofocas e de boa parte do que havia se tornado sua vida no último ano. Sua vontade era sumir, desaparecer sem dizer para onde vai como Benício havia feito. Mas, ao recordar de tudo o que havia conquistado até ali, recomeçar teria um sabor amargo. Uma cadeira na Academia Brasileira de Ciências, o segundo mais alto cargo na Importadora e as positivas perspectivas para que se tornasse chefe do departamento de paleoantropologia do Museu Nacional. Mas, enquanto nos negócios e na ciência sua reputação estava cada vez mais consolidada, nas fofocas e círculos sociais ele era cada vez mais jogado na lama. Não lhe feriam as opiniões a respeito dela, mas ela doloroso ver como aquilo era capaz de afastar-lhe as pessoas.

- Eu posso suportar comentários maldosos, opiniões duras e até mesmo mentiras sobre mim. Mas eu não suporto olhares de pena. E desde que ele se foi todos olham para mim como uma órfã. E, ao mesmo tempo, julgando-me silenciosamente, provavelmente pensando o que teria feito eu de errado para que isso acontecesse. - suspirou - Eu não suporto isso.

- Eu conheço a sensação. Conheço bem.

- Eu sei, querida.

- Mas ele vai voltar. Eles sempre voltam, não é mesmo?

- Eu não sei. Dessa vez, eu não sei. Também não sei se quero que ele volte também.

Sofia tinha apenas dezenove anos, mas carregava consigo o fardo da maturidade forçosa há anos. Ficou órfã aos dez anos e foi criada como empregada doméstica na casa de uma família aristocrática em Frankfurt. Quando a Guerra acabou, ela começou a juntar dinheiro para ir morar com os tios maternos em Heiligenblut. Aos dezesseis anos, viu-se nas garras de seu patrão, que lhe tratava de forma gentil para que lhe correspondesse os avanços. Um dia, perto do seu aniversário de dezessete anos, os dois são descobertos e um escândalo toma conta da cidade. Para vingar-se, a esposa de seu patrão telegrama o ocorrido para seus parentes na Áustria, que decidem não acolhê-la. Com quase todo o dinheiro que tinha, Sofia compra uma passagem só de ida para Viena, onde, por incumbência do destino, acabou conhecendo uma jovem universitária brasileira.

Uma semana passou-se e Vitória ainda não tinha notícias de Benício, a única coisa que sabia era que ele não havia deixado a cidade pois tivera a preocupação de avisar Marieta que estava bem. Ele não estava na mansão nem em seu antigo apartamento, o que levou Vitória a assumir que ele estivesse em um hotel. A ideia de que ele fosse visto causava-lhe aflição - as pessoas estavam começando a esquecer o assunto, mas, caso ele ficasse perambulando pela cidade, iriam voltar a formular suposições e transformar suas vidas em entretenimento novamente. Mas, como ninguém havia falado nada, era provável que ele estivesse tomando cuidado. Nem ao escritório ele comparecia - coisa que ele já pouco fazia desde que Marieta assumira a direção. Vitória estava incerta sobre o que deveria fazer, mas lhe causava ansiedade não saber o que ele faria.

- Saia desse escritório, Dona Vitória. - Dizia Dona Ivete, já de noite, deixando a bandeja com a janta de Vitória na mesa dela. - Estás aí o dia inteiro!

- Tenho muito trabalho a fazer. - Respondeu Vitória, com os olhos em uma série de documentos em sua mesa. - Obrigada, Ivete.

- Trate de descansar amanhã. Trabalhar assim dia de domingo chega ser pecado!

- Muita gente não tem a escolha de descansar em domingo e dia santo.

- É, mas a senhorita aí tem escolha. E trate de maneirar nessa cachaça que isso faz mal para o cérebro!

- Está bem... - revirou os olhos.

- Eu vou para casa, a senhora precisa de mais alguma coisa?

- Não, obrigada. Vá para casa, descanse.

- Boa noite, Dona Vitória.

- Boa noite, Ivete.

Ignorando o conselho de Dona Ivete, Vitória continuou a beber. Bebeu e esqueceu-se da fome; a sua comida permaneceu ali, intocada. As letras dos documentos que lia começaram a embaralhar-se e ela percebeu que estava bêbada, tanto de álcool como de sono. Estava fisicamente exausta. As portas da varanda estavam todas abertas e uma brisa fresca invadia seu escritório, convidando-lhe a um sono gostoso em meio a tantas noites quentes e sem vento. Adormeceu debruçada em sua mesa. Madrugada a dentro, uma forte chuva de verão caiu e a ventania acentuou-se.

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Castro e SouzaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora