Capítulo LXIV - Onze mil anos atrás

326 56 20
                                    

O Museu Nacional da Quinta da Boa Vista estava movimentado para uma tarde de quarta-feira. Crianças encantadas com os fósseis de tigres dente-de-sabre e preguiças gigantes, enquanto seus pais observavam fascinados os artefatos egípcios e greco-romanos. Havia uma ala especial expondo alguns artefatos emprestados do Museu de Copenhague, mas estava relativamente vazia. Benício encarava um caixote de vidro onde se encontravam crânios humanos fossilizados. Ignorando as placas indicando do que se tratava, ele permaneceu encarando o vidro sem tirar nenhuma conclusão sobre aquilo ali.

- O Homem da Lagoa Santa. - Soou uma voz feminina conhecida para ele. - Um pequeno empréstimo de alguns conhecidos meus na Dinamarca. Foram encontrados em Minas Gerais na década de quarenta por um arqueólogo dinamarquês. São os americanos mais antigos já encontrados, possivelmente pertencem ao Pleistoceno, datando cerca de...

- ... Onze mil anos atrás. - Completou Benício, como quem conhece aquele discurso de cor. - Tens o hábito de falar muito sobre paleontologia quando está bêbada.

Benício escutou Vitória rir, mas ainda não havia se virado para ela. Declarou sua própria atitude como desnecessariamente rude, respirou fundo e a encarou pela primeira vez. Estava impecavelmente arrumada, como sempre; vestia uma saia de linho azul marinho e uma blusa de seda branca, o que ela gostava de vestir para trabalhar. Seu batom estava alguns tons mais claro que o normal e dois brincos de pérola pendiam em suas orelhas, bem a baixo do cabelo que estava crescido e cobria o topo das mesmas.

- O que lhe trazes aqui? - Perguntou Vitória.

- Eu não sei. - suspirou.

- Pareces cansado.

- E estou.

- E de ressaca.

- Também estou.

Vitoria cruzou os braços e virou de costas para o expositor em silêncio. Benício soltou uma leve risada ao ver que Vitória tinha ficado quieta sem motivo, o que era tão atípico dela. Ele procurava consigo mesmo as palavras para iniciar um diálogo que ele não gostaria de ter.

- Minha irmã teve comigo noite passada. Nós conversamos. Pelo visto aquela tua amiga não é apenas amiga dela.

- É, eu soube.

- Eu não acho que eu vá conseguir dormir em paz nunca mais na minha vida. - Desabafou Benício.

- É, eu imaginei que essa fosse ser a tua reação.

- Se alguém descobrir, a vida dela acaba. Ela pode acabar em um hospício ou presa ou...

- Benício, Marieta ficará bem. Ela pode cuidar de si mesma.

- Ela nunca pôde.

- Ela não é mais a mesma. - sorriu - Não foi apenas um corte de cabelo, um batom ou um trabalho. Eu tenho para mim que ela saberá manter-se segura. Lili lida com isso há mais de dez anos.

- Mesmo?

- Conversei com ela há uns dias, após ter descoberto sobre ela e Marieta. Estão juntas desde o nosso noivado.

- Marieta parece feliz. - riu - Quando torci para que ela jamais se casasse novamente, não foi sob essas circunstâncias...

- É, eu imagino. - riu.

- Eu só quero que ela fique bem. Eu preciso que ela fique bem.

- Ela ficará.

Em silêncio novamente, os dois ficaram observando o movimento no museu sem nada em mente para dizer, mas com a necessidade de finalizar aquele encontro estranho.

- Então, este é o teu trabalho agora? - Perguntou Benício.

- Sim. - sorriu - Deixei a Direção da Importadora. Sou Secretária do Departamento de Paleoantropologia.

- E o que estás a pesquisar?

- Eles. - Respondeu Vitória, apontando para o expositor do Homem de Lagoa Santa. - Estou retomando as pesquisas de Peter Lund para tentar provar que estes fósseis de fato pertenceram ao Pleistoceno e são contemporâneos da megafauna.

- Megafauna?

- Aquela Preguiça Gigante ali. - Esclareceu Vitória, apontando para o fóssil do enorme animal no outro salão.

- Ah, sim. - riu - E qual é a dificuldade de provar isso?

- É muito difícil de datar os ossos de forma precisa. E eu sou constantemente encorajada a deixar isso de lado.

- Por quê?

- Huxley e Darwin encurralaram a Igreja quanto ao que está descrito no livro de Gênesis e há anos eles tentam cortonar, encontrar formas de explicar a religião através da ciência. Comprovar a antiguidade do homem americano é mais um passo para refutar a fantasia bíblica sobre nossa criação.

- Estás em uma verdadeira cruzada contra o cristianismo, não é mesmo, Doutora?

- Não tenho nada contra a fé, apenas contra as instituições. - riu.

- É claro. - riu - Eu preciso ir.

- Benício?

- Sim?

- Apareça para o jantar. - sorriu.

- Seria estranho.

- É claro que não...

- Tchau, Vitória. - sorriu.

- Tchau.

E naquele diálogo seco findou-se a breve conversa entre os dois. O assunto que deveria render uma noite inteira acompanhado de uma garrafa de cachaça resumiu-se em uma curta troca de palavras em público cujos bois mal podiam ser nomeados. Vitória sentia-se cansada. Não cansaço físico ou mental, mas uma fatiga estranha de quem carrega algo pesado sobre os próprios ombros. Ela odiava ver Benício daquela forma. Ainda era cedo e já era possível sentir o cheiro do álcool. Os olhos profundos de quem não dorme bem que ele sempre teve estavam arroxeados em uma tonalidade que poderia ser confundida com um hematoma. Estava mais magro que o normal, mas seu rosto estava inchado, o que Vitória deduziu serem efeitos de entorpecentes que um dia reconhecera nela própria. Quem não o conhecia, diria que estava apenas resfriado, com alguma indisposição ou apenas tendo um dia ruim. Mas Vitória sabia o que se passava - e parte dela era incapaz de evitar a culpa que sentia por tudo aquilo.

Uma semana se passou, Vitória não tinha notícias de Benício. Através das fofocas das empregadas, ela sabia que Marieta estava em Teresópolis com as crianças e que Lili estava com ela. A ideia das duas juntas ainda soava um pouco surreal, mas lhe deixava tranquila saber que a cunhada não estava sozinha naquele momento em que a mesma não queria vê-la nem pintada de ouro. As coisas estavam imperdoavelmente monótonas; o trabalho era sua única ocupação. Evitava visitar os tios e os primos com medo de envolvê-los em qualquer situação desagradável e insistia no próprio isolamento como se fosse algo bom. Parte dela sabia que estava ficando louca - a outra parte acusava-lhe de merecer.

- Vitória! - Gritava Sofia enquanto subia as escadas. - Vitória!

- O que foi, Sofia? - Atendeu Vitória, irritada, em seu roupão ao abrir a porta do quarto. - São seis horas da manhã, que gritaria é essa?

- Um garoto acabou de trazer um telegrama do hospital. - Explicou Sofia, esbaforida. - Benício está ferido.

▪ ▪ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ▪ ▪

Castro e SouzaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora