Capítulo LXVI - Enfermeira

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Vitória estava sentada na recepção do hospital Santa Eugênia em Madureira. Era um hospital católico e consideravelmente humilde, apesar de ser muito grande. Ela sabia que ali não havia metade da tecnologia encontrada no Hospital Central, mas não havia o que fazer quanto a isso. Depositou sua confiança naqueles médicos, na esperança que a posição social de Benício fosse motivação o suficiente para que exerçam sua profissão com o máximo de competência. Estava sentada ali há meia-hora e ainda não tinha notícias. Ficar parada estava enlouquecendo-a.

Ao adentrar a enfermaria, Vitória deu de cara com uma enorme confusão de doentes e freiras. Lembrava o primeiro hospital em que trabalhou, aos dezenove anos, quando treinava para ser enfermeira. Recordou-se do choque que foi ver um osso exposto pela primeira vez, do nervosismo de não conseguir estancar um sangramento severo e da dor que foi ver um paciente morrer pela primeira vez em sua frente. A Guerra parecia ter sido há mil anos atrás, mas haviam menos sete anos desde que ela usou o uniforme da Green Cross pela última vez. De certa forma, ela sempre sentiu que a guerra era um cenário que só havia acabado para algumas pessoas.

- Com licença. - Disse Vitória, aproximando-se de uma freira.

- Senhora, por favor espere lá fora. É perigoso ficar aqui. - Disse a freira. Era uma mulher jovem, não parecia ser muito mais velha que ela.

- Eu sei. Meu marido está lá em cima e ainda não tenho notícias dele.

- Perdoe-me, não há nada que posso fazer quanto a isso. Confie nos médicos e reze para que ele fique bem.

- Sim, é claro. - revirou os olhos - Mas estou agoniada sem fazer nada, eu poderia ajudá-las por aqui.

- Sinto muito, mas não acho que...

- Eu sou enfermeira.

Em questão de minutos, Vitória ocupou-se de ajudar as freiras. Tinha medo de estar muito enferrujada, mas percebeu que nada que aprendera havia sido completamente esquecido. As freiras impressionaram-se com a destreza que Vitória tinha para manusear os pacientes e limpar aquelas feridas. Vitória não fez questão de mencionar quem era - ninguém fazia ideia de quem ela era naquela parte da cidade. Ali, ela era apenas uma enfermeira habilidosa e aposentada aguardando o marido sair da cirurgia após envolver-se em uma briga de bar e por pouco ser resgatado com vida.

Mais de duas horas se passaram e um médico foi até a enfermaria a procura de Vitória. Benício estava desacordado, mas ia sobreviver.

- Ele não quebrou nenhum osso, o que é bem surpreendente. Foi uma briga muito feia, pelo visto. O pior ferimento foi o do abdômen, foram três cortes bem feios causados por um golpe com uma garrafa de vidro quebrada. - Disse o médico, enquanto Vitória estava sentada ao pé da cama de Benício observando-o dormir com o rosto machucado e um tubo de borracha em seu nariz.

- Algum outro além desse?

- Sim, um corte na mão e outro na perna. Ambos superficiais. Ele também sofreu uma lesão na perna, não se assuste com a cor, ficou bem roxo, mas não é grave. O pior já passou.

- O pior ainda é o risco de infecção. - Disse Vitória, exausta da maneira como o médico media as palavras em prol de não alarmá-la.

- Ele ficará em observação por hoje. - Informou o médico, tentando desviar o assunto da infecção. - Amanhã de manhã já poderá levá-lo para casa, creio eu.

- Claro. Obrigada.

- A senhora deveria ir para casa, descansar um pouco. Ele está em boas mãos.

- Eu estou bem. - Respondeu Vitória, não querendo mencionar o quão longe dali morava e que a viagem não valeria a pena. - Não quero que ele esteja sozinho quando acordar.

- Não há ninguém que possa vir acompanhá-lo, então?

- A minha cunhada está voltando de Teresópolis, deve chegar em poucas horas. Mas eu vou ficar, obrigada.

- Como quiseres, senhora.

- Obrigada, Doutor.

Em pouco mais de uma hora, Marieta chegou. Nervosa, ansiosa e chorando descontroladamente ao ver o irmão naquela situação.

- Marieta, por favor, acalme-se. Ele está bem. - Disse Vitória, tentando acalmar a cunhada.

- Ele não está bem! Ele está ferido e desacordado em uma cama de hospital neste lugar horroroso! - Exclamou Marieta, alterada, vendo o irmão deitado.

- Bom, ele está o melhor que poderia após ser esfaqueado! - Replicou Vitória, arrependendo-se do tom usado.

- E se ele tivesse morrido? E se ele morrer!?

- Ele está se recuperando bem! - Disse Vitória. Subitamente, ela pegou-se usando os mesmos eufemismos do médico para tranquilizar Marieta.

- Isso é culpa sua! - Exclamou Marieta.

- Minha? - ergueu a sobrancelha - Eu nem estava lá!

- Meu irmão não tem sido ele mesmo desde o Natal, e é por tua causa! - Acusou Marieta.

- Recuso-me a ser responsabilizada pelas atitudes imprudentes de um homem de trinta anos, comecemos por aí. - Disse Vitória, indignada.

- Maldito seja o dia em que decidi apresentá-los! - Resmungou Marieta, olhando para cima. - Espero que saibas bem que arruinaste tanto a reputação quanto a vida dele!

- E espero que saibas que não fiz nada disso sozinha e que ele não foi o único a sofrer as consequências! - Replicou Vitória, com raiva, mas magoada. - Chega! Eu não quero mais brigar contigo, Marieta. Sei que a situação é dura, mas não tens o direito de culpar-me por tudo que sucede ao teu irmão assim.

- Eu devo estar sendo castigada, não é possível... - Choramingou Marieta.

- Tentar fazer isso ser sobre mim ou sobre você também não ajuda! - Repreendeu Vitória. Marieta encolheu-se.

- Ele vai acordar, não vai? - Perguntou Marieta, entre suspiros e com a voz chorosa.

- É claro que vai. - Respondeu Vitória, amavelmente, tentando ser compreensiva com o comportamento de Marieta. - Ele não está em coma, apenas dormindo por conta dos remédios. Deve acordar em algumas horas ou, no máximo, amanhã. Fique tranquila.

Marieta não reteve as lágrima e chorou de soluçar. Por um momento, ignorou completamente todos os ressentimentos e contendas com a cunhada e caiu nela em um abraço apertado, deixando que suas lágrimas rolassem livremente pelo ombro da mesma. Vitória abraçou-a de volta, um pouco confusa, mas plenamente ciente do estado em que Marieta se encontrava e, como conhecedora de sua natureza sensível, compreendeu a necessidade que ela tinha de chorar e abraçar alguém naquele momento. Não seria agora que Marieta iria prestar-se a perdoá-la, mas Vitória teve esperança de que talvez pudesse ser um começo.

Já era tarde da noite e Benício ainda não havia acordado. Vitória insistiu que Marieta fosse para casa descansar e cuidar das crianças e garantiu que permaneceria ali. E assim ela fez; sentada ao lado da cama de Benício por horas e horas, contando apenas com a simpatia das freiras e enfermeiras que, de vez em quando, iam lhe trazer um copo d'água ou algo para comer. Perto da meia-noite, ela foi sentindo o sono bater, mas lutou contra ele. Entretanto, seu corpo começou a enganá-la para que pudesse descansar - aproximou a cadeira da cama, apoiou os cotovelos no colchão, debruçou-se sobre os próprios braços e, em questão de minutos, estava dormindo. Sem a mínima ideia de há quanto tempo havia cochilado, Vitória despertou suavemente ao sentir o movimento de uma mão acariciando seus cabelos. Levaram alguns segundos para que ela despertasse completamente e entendesse o que era.

- Olá, Doutora. - Disse Benício, com a voz fraca e a respiração pesada, forçando um leve sorriso como se tudo estivesse bem.

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