Capítulo XXIV - Sentimentos turvos

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Uma imponente mansão no bairro de Laranjeiras ocupou o campo de visão de Vitória ao parar o carro em frente ao local que Benício havia indicado. Ele desceu do carro e abriu o portão da propriedade, fazendo sinal para que ela entrasse com o carro. Um caminho acimentado circundava uma fonte d'água desligada bem na frente da residência. Ao lado da mansão, havia uma enorme porta dupla de madeira escura. Quando Benício as abriu, Vitória dirigiu em direção a uma rampa que parecia dar no subsolo.

– Eu não acredito! – Exclamou Vitória, boquiaberta, ao descer do carro e pisar em uma enorme garagem com oito carros.

– Gostou? São bonitos, não?

– São incríveis! Este Chrysler nem deveria estar no Brasil, estou tentando trazê-lo desde que cheguei aqui. – riu.

– Vencer algumas corridas por aí, às vezes, impressiona as pessoas certas. – riu – Venha comigo.

Benício tomou-lhe a mão e os dois subiram alguns lances de escada até se depararem com uma porta. Quando aberta, Vitória encontrou-se em uma enorme biblioteca.

– Uau...

Mais a frente, chegaram a um saguão – a entrada da casa – onde uma suntuosa escada asas-de-anjo erguia-se nos fundos.

– Bem-vinda à minha casa.

– Este lugar é lindo! – o sorriso de Vitória foi se desfazendo por um momento – Esta era a casa de seus pais, certo?

– É. – Respondeu Benício, com um leve sorriso. – É bonita não, não é?

Vitoria lembrava-se com clareza da morte dos pais de Benício. Suas famílias não eram próximas, mas a morte dos dois chocou muita gente na época. Na Estrada de Ferro que ligava o Estado do Espírito Santo a Minas Gerais, um grupo de ladrões soltou a última carroceria de uma locomotiva no meio do trajeto e fizeram os passageiros de reféns, exigindo joias, dinheiro e tudo de valor que tinham. Dispararam contra eles quando alguns se recusaram a acatar tais ordens. Onze pessoas morreram. A maior parte dos passageiros pertenciam à classe média alta capixaba, poucos ali tinham qualquer distinção social realmente gritante – com exceção dos pais de Benício, que só estavam naquele vagão, pois tinham um compromisso em Belo Horizonte e a primeira classe estava lotada.

– Ainda manténs a casa limpa... – Comentou Vitória.

– Marieta, na verdade. A casa ficou fechada por anos. Há um tempo, ela decidiu recontratar os caseiros e manda limpar de tempo em tempo. Eu transformei o porão em uma garagem. – riu.

– Tua irmã não quis vir morar aqui quando casou?

– Não. Imagino que seria doloroso para ela. Era muito recente.

– Sei como é...

Vitória continuou a olhar a casa, admirando os detalhes do que parecia ter sido um dia um lar muito feliz. Benício sentou-se na escada e observava-a atentamente, reparando na sua maneira de perceber as coisas. Vitória vira de tudo na vida, do melhor ao pior, e, mesmo assim, ela era capaz de impressionar-se com coisas bobas, como uma festa de casamento animada ou uma casa bonita na qual ela, provavelmente, já viu muitas similares. Era adorável. Ela, compenetrada nos detalhes da biblioteca e na decoração, vendo as fotografias de família e outros detalhes, nem percebera quando Benício fora até a sala de estar que havia do lado oposto do saguão e retornou com uma garrafa de uísque.

– Estás sóbria demais. – Anunciou ele ao retornar com a garrafa. Ela riu e tomou a garrafa em mãos enquanto ele segurava os copos.

– E tu estás de menos. – Repreendeu ela ao encher os copos. Deixou a garrafa em um aparador, os dois brindaram e deram um gole.

– Ainda tens cigarros? - Perguntou Benício.

– Sempre.

Vitória foi até a biblioteca pegar sua bolsinha, onde estava sua carteira de cigarros e o isqueiro. Quando retornou, notou uma vitrola do outro lado do saguão, próxima à escada.

– Ei, aquilo funciona? – Perguntou Vitória, levando o cigarro à boca em seguida.

– Sim. – Vitória entregou a carteira e o isqueiro para Benício após acender seu cigarro – Era minha, comprei uma nova e trouxe esta para cá. Acredito que ainda tenham alguns discos no móvel.

Vitória arrastou o móvel onde estava o aparelho até a outra parede e tirou uma luminária da tomada para ligar. Ainda havia um disco no prato que começou a girar assim que ela ligou. Ao posicionar a haste, uma deliciosa melodia invadiu o ambiente.

– Eu conheço... – Murmurou Vitória, com a expressão pensativa. – ... Because it smiles upon the one I love... – cantarolou ela junto com a música, olhando para cima e ainda se esforçando para lembrar.

– Marion Harris. – Informou Benício, sorrindo.

– Sim, é claro! – riu – Jealous! Como pude me esquecer!?

Vitória abaixou-se e soltou a fivela dos sapatos, descalçando-os. Deu uma última golada em seu uísque e rodopiou no ritmo da música enquanto cantarolava alguns trechos quando lembrava da letra.

– Venha cá. – Disse Benício quando a puxou para o meio do salão.

A canção os embalou em uma dança lenta e envolvente. Mantinham as bochechas coladas e a mente vazia. Era um enorme privilégio não pensar em coisa alguma. Não ter de se preocupar com olhares curiosos ou posturas a manter. Nada além de uma voz suave e uma melodia deleitosa embaladas pelo som ruidoso da vitrola antiga que apenas acrescentava um charme a mais à ocasião.

– Podemos nos encontrar aqui agora. – Disse Benício, sem descolar o rosto do dela. – A rua é muito pouco movimentada. Podemos entrar e sair tranquilamente sem que ninguém nos veja.

Vitória rodopiou e Benício a trouxe de volta para si. Sentiam suas respectivas respirações e seus peitos colados denunciavam as batidas de seus corações que insistiam em agitar-se fora do ritmo da valsa.

– Tudo isso para passares a noite comigo? – Questionou Vitória, sorrindo, com os lábios próximos dos dele.

– Vale a pena.

Com a mesma rapidez que a valsa os levou ao beijo, o beijo os levaria à cama. O único problema é que todos os muitos quartos não passavam de móveis cobertos de lençóis e poeira ou então cômodos vazios. Então valsaram seu caminho até uma das salas de estar, onde deram conta de começar a esvaziar aquela garrafa de uísque. Diferentemente de todos os outros encontros que tiveram nas últimas semanas, não tinham pressa alguma – havia uma noite inteira pela frente.

A mansão tornou-se palco de um caso não tão proibido entre dois jovens não tão jovens vivendo um romance não tão romântico. Vitória e Benício estavam sempre juntos em festas, bares, clubes e diversos eventos próprios de suas posições sociais. Os jovens olhavam para seu relacionamento com naturalidade; os mais velhos torciam o nariz. Parte do tempo estavam entre uma camada da sociedade de pensadores livres, de pessoas que não podiam se importar menos com o que dois seres humanos decidiam fazer com suas vidas amorosas. Outra parte do tempo passavam com as pessoas que compunham a maioria, aquelas que sentiam a necessidade de impor regras e julgar o comportamento de todos a todo momento, como se fosse útil ou prazeroso de alguma forma. Mas havia uma parcela de tempo que passavam sozinhos sob teto de uma construção gigantesca onde podiam fazer o que quisessem. Suas noites eram compostas pela farra com os amigos nas intermináveis festas que frequentavam e suas madrugadas eram feitas de uma paixão discreta que ainda se confundia com a simplicidade da atração. Um grande emaranhado de sentimentos turvos provenientes de pessoas que, naquele momento, não faziam questão alguma de clareza.

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