Capítulo III - Minha Caríssima Vitto

1.3K 186 252
                                    

Vestida de preto em uma saia de lã virgem e uma blusa de botões de seda, Vitória estava sozinha em uma das salas de estar de seu tio, andando de um lado para o outro com um copo de conhaque em mãos, aguardando a chegada do juiz que faria a leitura do testamento de seu pai. Por ter chegado da Inglaterra antes de o previsto, resolveram adiantar a seção. Ela havia instalado-se em uma das propriedades do pai um sobrado de porão alto, bonito e espaçoso – bem no centro da cidade. Preferiu a casa no centro à residência principal da família – uma mansão no Alto da Boa Vista – por achar a casa demasiadamente grande e trabalhosa para que morasse sozinha, embora tenha mantido os caseiros e administradores. Pretendia deixar a residência aberta ao público, expondo as coleções de arte do pai e alguns itens de sua própria coleção particular, que estavam sendo trazidos de Portugal. Também tinha a intenção de usar o lugar para festas particulares, mas não era nisso que pensava no momento.

Dona Laura, esposa de seu tio, aproximou-se da porta e bateu levemente a fim de chamar a atenção da sobrinha, que parecia transtornada. Quando Vitória voltara a atenção para a tia, ela foi ao encontro dela e pôs delicadamente a mão em seu braço.

– Estás bem, minha cara? – Perguntou Laura, de maneira cândida, quase maternal.

– Estou sim, tia, obrigada. Tenho muita coisa na cabeça, apenas.

– O juiz está aqui, estamos aguardando-te na biblioteca.

– Obrigada por avisar. Já vou.

Vitória virou o último gole que havia na taça, alisou a roupa e ajeitou o cabelo, a fim de se recompor.

"[...] para meu fiel funcionário e amigo, José Bento dos Santos, deixo a quantia de cinco (5) contos de réis. Para meus caros colegas, Antônio Ramos da Silva e Carlos Andrade de Melo, deixo a quantia de dois (2) contos de réis para cada. Para a Senhorita Aleandra da Costa, deixo a quantia de quatro (4) mil réis e a residência em Belo Horizonte na Avenida Bias Fortes. Para meu caríssimo irmão, João Afonso de Castro, deixo a quantia de dez (10) mil contos de réis e manifesto o desejo de que tal valor seja utilizado para financiar os estudos de meus queridos sobrinhos: Bernardo, Henrique e Estela; e de meus sobrinhos-netos: Antônio, Francisca e Leonardo. Ainda para meu irmão, deixo dez por cento (10%) de minhas ações na empresa Castro & Melo Importadoras. Por fim, deixo para minha amada filha, Vitória Beatriz Assis de Castro, todo o valor correspondente ao resto de minhas posses; noventa por cento (90%) de minhas ações na empresa Castro & Melo Importadoras, as propriedades no Rio de Janeiro localizadas na Rua Áurea e na Estrada do Açude, a propriedade em Lisboa localizada na Rua Augusta e a residência em São Paulo, localizada na Avenida Paulista, bem como os direitos sobre todas as minhas obras e trabalhos, publicados ou não. Ainda para minha filha, deixo minha inestimável coleção de arte. Manifesto o desejo de que todos os meus trabalhos e pesquisas, finalizados ou não, sejam enviados para a Academia Brasileira de Ciências."

Todos na sala ficaram um pouco atordoados enquanto o juiz, sem interrupções, declamava o testamento de Constantin de Castro, embora nada muito surpreendente fora dito. Afonso quase pode transparecer sua fúria quando viu que herdaria apenas dez por cento das ações do falecido na sociedade da Castro & Melo Importadoras. Ainda tinha esperanças que o irmão lhe concedesse mais de trinta e cinco por cento, já que possuía, desde 1919, nove por cento da empresa. A sobrinha continuaria em posse da maior parte dos negócios, como era esperado, com poder o suficiente para anular seus votos - não que alguma vez tivesse tido direito a algum.

– Há uma carta – Disse o juiz. –, deixada pelo Senhor Constantin, para sua filha, Vitória de Castro. Gostaria de lê-la, senhorita?

Vitória levantou-se e tomou o envelope nas mãos, abrindo a carta com delicadeza. Surpreendeu-se ao ver que o papel era pequeno e haviam poucas palavras contidas ali.

"Minha caríssima Vitto, [...]"

Sorriu ao ver que o pai iniciara a carta com o apelido carinhoso que lhe dera quando era pequena.

"[...] ao estar em posse desta carta, significa que não estou mais aqui e que provavelmente não nos foi concedida a chance de reconciliarmo-nos apropriadamente. Peço perdão por todos os meus erros como pai, sei que falhei terrivelmente contigo, embora tudo que fiz foi em prol do teu bem e nada mais. A morte de tua mãe e tua irmã certamente não nos proporcionou nossos melhores estados para que florescesse uma melhor relação de pai e filha, mas gosto de pensar que, apesar de nossas diferenças, temos algo que irá nos unir para sempre: uma curiosidade insaciável. Saibas que sempre acreditei em teu potencial e creio que possas suportar o peso do fardo que lhe deixei, que é de cuidar dos negócios da família. O fiz por acreditar que a mulher que és está mais que apta para carregar tudo aquilo que ergui ao longo de minha vida. Quero que continues seguindo o teu coração como fizeste em todas as ocasiões - até quando me contrariaste. Sejas sábia em tuas decisões. Passe adiante tudo aquilo que aprender. Que tua ânsia por conhecimento cesse apenas em teu leito de morte.

Com amor,

Seu pai."

Apesar de emocionada, Vitória não chorou - não era de seu feitio. Chorara a morte do pai há duas semanas quando ficou sabendo, ainda em Londres. Sentiu um aperto no peito ao perceber, finalmente, que seu pai se fora de verdade e ela não havia se reconciliado com ele enquanto pôde por pura teimosia e orgulho. Sentiu-se culpada; tanta raiva sentira do pai por anos e, quando teve a chance de se acertar com ele, não o fez - agora era tarde. Mas estava feliz por saber que, apesar de todos os seus erros, o pai morreu nutrindo por ela aquele respeito que recebera de pouquíssimos homens ao longo da vida. Ele lhe deixou tudo; não para sua filha Vitória de Castro, futura esposa de alguém, futura mãe de alguém. E sim para Vitória de Castro, a mulher que era naquele exato momento. Um enorme senso de responsabilidade brotou em seu peito. Estava determinada a fazer jus à mulher descrita. Mulher, sim. Uma moça solteira reconhecida como uma mulher em seu próprio direito pelo seu pai. Era tudo que importava para ela naquele momento.

Estava no carro por volta das quinze horas, voltando da casa dos tios, e pediu que o motorista passasse pela Mansão Assis de Castro no Alto da Boa Vista para que pudesse ver a casa. O lugar, tão vazio e, ao mesmo tempo, impecavelmente limpo, conservou a mesma essência de quando fora habitado por ela, os pais e a irmã. A decoração no estilo neoclássico dava ao ambiente um ar de museu e o monte de antiquários do pai contribuíam para isso. Limitou-se a olhar o andar principal, prometeu para si mesma que voltaria para organizar o resto da casa assim que pudesse e retornou para o carro. Observou a imponente construção diminuir com a distância. Ponderou se algum dia voltaria a viver ali.

"Se me casar, talvez...", pensou.

▪ ▪ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ◇ ▪ ▪ ▪

Castro e SouzaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora