Interlúdio

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Uma tarde ensolarada após uma forte e curta chuva agraciava os ares do Rio de Janeiro naquele fim de novembro. Marieta de Souza e Sá caminhava pelo jardim do cemitério da Igreja Ordem Terceira do Carmo. Seu sapatos pisavam na grama úmida ao passo que seu olfato foi invadido pelo agradável cheiro de terra molhada. Na última vez que havia estado ali, o sol estava escaldante e ela vestia pesados trajes negros. Agora, vestia lilás e o tempo estava ameno. Em suas mãos, um delicado lírio-do-nilo branco jazia. Ela, enfim, parou em frente à uma lápide.

• José Lourenço Oliveira de Sá •
☆ 1884 -✞ 1925
Pai, irmão e amigo.

"Meu buquê de noiva possuía uma muda escondida. É tradição na minha família as mulheres plantarem os buquês no jardim, como uma metáfora sobre cuidar daquelas flores e vê-las florescerem junto com seu casamento. Eu escolhi copos-de-leite, assim como minha avó. Minha mãe não seguiu a tradição, nunca plantou os lírios de seu buquê, e, por quinze anos, eu vi o casamento dos meus pais desmoronando lentamente. As altercações, discussões e lágrimas... Eu jurei que comigo seria diferente. Desde que me entendia por gente eu ajoelhava em frente à cama todas as noites e, como qualquer garota, eu pedia à Deus por um marido. Um que me amasse, que zelasse por mim e que me fizesse muito feliz. E, claro, que fosse bonito também. E lá estava tu. Tão alto, elegante, educado... Um verdadeiro príncipe. E eu tão jovem, desajeitada e ávida por cativar tua afeição. Por muitos anos, acreditei que quando um homem pede para que uma mulher case com ele é porque a vida tornaria-se insuportável sem a presença daquela que ele ama. Ninguém nunca havia me dito que existam tantos interesses e diferentes razões para que um casamento acontecesse. Mas eu acreditava apenas no amor. No teu amor. Acreditei até o último segundo. Porque eu quis acreditar. Eu precisava acreditar. Só assim a vida seria suportável. E arrancaste tudo de mim. Eu tive fé até o último segundo que, apesar da dor que me infligias, eu era amada por ti. Eu dediquei cada fibra do meu ser ao nosso casamento. Cuidei da tua casa, da tua vida e da tua família. Andei dois passos atrás de ti a vida inteira, orgulhosa apenas por compartilhar da tua sombra. Resignei-me diante dos teus destratos e orei para que Deus iluminasse meu coração e tornasse-me boa o suficiente para merecer nada além do teu carinho. Eu acreditava que sabias perfeitamente o que era melhor para mim. Sujeitei-me a ti e deixei que fosses a minha cabeça e em troca eu só queria ser amada como se fossemos uma só carne. Mas, seja lá o que sentias por mim, não era amor. Talvez tenha sido um dia, eu não sei. E, quando morreste, eu estava perdida. Um pedaço meu foi arrancado. Meus filhos estavam órfãos e tudo o que eu conseguia pensar era que eu nunca daria conta de ficar sozinha. Sempre disseste que eu jamais seria algo sem ti. Que tu eras o que dava significância à minha existência. Por tantos anos eu tentei entender o que te levava a ser tão cruel. O que poderia levar um homem a ser tão terrível com a sua esposa que nada fazia além de dedicar a própria vida a ele. Por muito tempo eu achei que o problema fosse eu. Recentemente, eu cheguei à conclusão que eu jamais saberei dos teus motivos. E foi recentemente também, após refletir bastante, eu desisti de encontrar respostas. Seja lá o que sentias por mim, não era amor. Eu fui deslumbrada pela possibilidade de viver uma vida que eu sempre acreditei que seria perfeita. Bem, a realidade estava longe de ser perfeita. Mas, do fundo do meu coração, eu amei-te. E foi justamente amor que eu sentia por ti deu-me coragem para suportar o inferno que era viver contigo. Essa coragem foi a minha ruína. Eu sinto muito pelo teu pai ter lhe pressionado a casar comigo. Eu sinto muito pela dependência ter tornado-se um fardo para ti. Eu sinto por nunca ter sido a mulher dos teus sonhos e... Bem, saiba que não sinto raiva. Eu aprendi muitas coisas ao longo do ano e uma delas é que eu sou incapaz de sentir raiva de ti a essas alturas. Anos e anos perdoando-lhe sem mesmo que me pedisses perdão e copiosamente justificando tuas atitudes para mim mesma não deixaram espaço para que eu guardasse nenhum tipo de ódio ou rancor, por mais que, de certa forma, eu gostaria. E gostaria que soubesses que sou grata. Deste-me a maior bênção que eu poderia ter em minha vida, que são meus filhos. Eu perdoo-lhe uma última vez, meu amor. Por tudo. E ainda peço a Deus que tenha misericórdia da tua alma e que recebas o que mereces de acordo com a vontade dEle. Mas eu sou muito feliz por não lhe ter em minha vida mais. Eu continuarei cultivando as flores de meu buquê no jardim, porque os frutos do nosso casamento, nossos filhos, ainda estão aqui e precisam de mim. Enquanto eles estiverem aqui, nossa família estará de pé. E eu recuso-me a deixar tantos anos para trás. Eu irei carregar para sempre as marcas que deixaste em mim, mas minha vida continuará. Meu jardim continuará a florescer. Quaisquer que fossem as tuas razões, não me importam mais, porque sempre tiveste escolhas e sempre escolheste a brutalidade e a covardia. A única certeza que tenho é que mereço um final feliz - ser amada com toda airosidade e delicadeza do mundo e amar terna e intensamente, livre de incumbência ou exasperação. Esta flor aqui que eu trouxe não possui raíz. Ela irá apenas murchar e apodrecer. Como tu."

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