Capítulo XXXII - Vista grossa

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O dia amanheceu nublado e extremamente abafado, ameaçando chover. Eram cerca de oito horas da manhã quando Benício e Vitória estavam sentados, em roupas limpas e passadas, de frente para o Delegado da Polícia do Rio de Janeiro.

Após Benício atirar em Laurentino, acertando seu abdômen, Vitória fez o que pode para conter o sangramento. Benício, a princípio, estranhou e tentou falar com ela, mas ela não parecia ouví-lo. Ela falava na primeira pessoa do plural como se houvessem muitas pessoas ali e murmurava palavras em inglês. Benício abraçou-a e percebeu que, na verdade, ela estava em choque – tratava de Laurentino como se fosse um soldado ferido. Embora a casa de Benício fosse um pouco isolada, os tiros foram ouvidos na rua de trás por um casal de velhinhos que foram acordados pelo barulho, chamando a polícia em seguida.

A polícia, em um bairro nobre como aquele, chega com as sirenes desligadas e bate educadamente na porta de uma mansão onde, supostamente, ocorrera um tiroteio. O próprio Delegado Garrel deixou a esposa na cama para responder ao chamado que foi comunicado na delegacia. Benício abriu a porta para os policiais – apenas o delegado e dois soldados – e os oficiais foram encarregados de recolher Laurentino, que ainda respirava, e levá-lo para um hospital o mais afastado o possível. Benício levou o delegado até a biblioteca, onde Vitória estava sentada em uma poltrona e enrolada em um cobertor com um copo de conhaque na mão. Os dois explicaram, brevemente, o que sucedera e Garrel permitiu que os dois fossem para suas casas, tomassem um banho e descansassem, pois tudo seria devidamente esclarecido pela manhã. Um policial levou Vitória até sua casa e recebeu ordens do delegado para que, ao invés de ficar parado em frente à casa dela, circulasse pelo bairro para não chamar atenção. A mesma coisa para Benício.

– Pelo que pude entender, o Senhor Laurentino Cavalcante pretendia extorquí-los. – Disse o Delegado Garrel. – O que ele estava usando para tal?

Benício e Vitória ficaram silenciosos. Laurentino pretendia extorquí-los usando um segredo cuja última pessoa que poderia saber era um delegado.

– Creio que falava de... – Começou Vitória. – Nosso caso. Ele também afirmara ter descoberto coisas sobre mim da época em que eu vivia na Europa. Coisas inventadas, eu suponho, para me assustar.

– Se eram inventadas, não haveria o que temer. – Disse o delegado. Vitória calou-se e desviou o olhar.

– Laurentino tinha motivos. – Continuou Benício. – Estava falido e culpava Vi... A Doutora Vitória por isso.

– Bem, eu compreendo. Fico feliz por estarem bem, é claro. Laurentino está no hospital sendo vigiado por dois oficiais, não se preocupem em relação a isso. A propósito, parabéns, senhorita, os médicos ligaram, disseram que ele não teria chances de sobreviver caso não tivesses tentado salvar a vida dele.

Vitória deu um sorriso leve e contido para Garrel, sem saber exatamente como deveria reagir àquelas palavras.

– E então, Delegado, está tudo bem?

– Então, espero que saibam que terei que fazer vista grossa ao fato de que os dois estavam, bem, juntos naquela noite. Eu deveria reportar os dois pela imoralidade, mas, devido ao estresse emocional que passaram, eu deixarei passar. Tendo em vista que a Senhorita Vitória já é uma mulher feita e responde por ela própria, não incomodarei o Senhor Afonso com tal coisa.

O Delegado tinha um tom sugestivo. Havia um significado por trás daquela explicação e era perfeitamente fácil de decifrar. Garrel frisou que Laurentino estava sendo vigiado por policiais - ele só abriria a boca para falar e seria ouvido quando lhes fosse conveniente. Disse que estava fazendo vista grossa para o caso dos dois devido ao estresse emocional que passaram - na verdade, era porque tinha muito mais a ganhar ficando quieto. Reforçou à Vitória que não reportaria a situação para seu tio - era apenas mais uma prova de sua cooperação, afinal, colaborar com Vitória valia muito mais a pena do que com Afonso em qualquer circunstância.

Castro e SouzaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora