Capítulo 1 - A fragrância da vida

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AVISO: contém desgaste emocional do protagonista.

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Como toda história, tudo teve seu início dentro de um caos primordial. Uma imensa nuvem pesada e que, dentro da mesma, existiam dois princípios. O Yang, o iluminado e ativo, e o Yin, o passivo e frio. Conforme o Yang começou a se agitar dentro do ovo primordial, a interação de ambos desenvolveu tudo que conhecemos nos dias atuais, em outras palavras, todo tipo de vida nesse universo.

Vida.

Esse termo foi criado com a finalidade de dar uma breve apresentação de tudo aquilo que se pode ver, sentir ou experimentar. Relaciona-se com o sentido crítico e define a forma de como cada pessoa constrói e atribui seus valores, que estão interligados em sua linha temporal. Assim, buscam seu autoconhecimento e suas normas, às quais atribuíram uma estabilidade tanto social quanto emocional, criando um equilíbrio entre a razão e a emoção.

Para Fai Chen, a vida, por mais que seja sofrida, merece ser vivida; e esse pensamento maduro e íntimo foi o suficiente para fazer com que achasse o propósito para viver, mesmo que em constante dor e tortura.

As pessoas costumam defender-se muito bem de seus próprios sentimentos. Vestem armaduras grossas e em certos casos, apresentam uma máscara de alegria fingida, com a qual se mantêm superficialmente na maioria de seu tempo. O jovem sabia muito bem o que era suportar essa agonia interna e como seus dias se tornaram escuros e sem uma única cor para lhe trazer um novo sabor de experiência.

Fai Chen, em resultado aos seus acontecimentos passados, decidiu sobreviver a uma vida solitária, morando afastado de todo o centro povoado e apenas mantendo contato humano quando fosse necessário. Esses momentos de necessidade sempre ocorriam nas noites mais frias, quando o mundo está em silêncio e o único barulho que os homens escutam é o som dos animais noturnos esperando a melhor hora para atacar a pobre presa. São nessas noites que ele saía para cultivar e conquistar, pelo seu esforço, gratidão. Momentos onde os homens não sentem medo, raiva ou nojo dele e sim gratidão, por retirar alguma maldição da família, aniquilar algum espírito ou até mesmo, combater jovens cultivadores demoníacos, que causam certos problemas. Mas, a maior parte do tempo, quando algum problema o atraía, era em razão de yaomos, conhecidos como uma classe de criaturas sobrenaturais e que quase sempre estavam relacionados aos espíritos de animais maléficos, perturbando o local que os cercavam.

Entretanto, nenhum desses homens medrosos soube de fato quem realmente era o jovem salvador de suas vidas. O grande herdeiro da família Fai, o filho desprezado e com os olhos da manipulação. Em resultado às injúrias e perseguições, mudou seu visual o máximo que conseguiu e tornou-se outra pessoa. Um homem "cego" e que tinha os dons do cultivo. Apenas isso.

Não existia mais o filho desprezado Fai Chen, pois, de uma hora para outra, seus registros foram apagados, como se jamais existisse um jovem defeituoso e que atrairia o azar no grande currículo familiar. De todo modo, isso não foi de se achar surpreendente, pois sempre teve consciência do quanto sua família o odiava e o menosprezava. Por exemplo, desde pequeno foi acostumado a utilizar vendas nos olhos e, em vista disso, não se tornou um desafio no presente. Imitar uma pessoa com deficiência visual era fácil para ele, porém seu coração odiava mentir para os pobres homens que precisam urgentemente de sua humilde ajuda para combater o que chamavam de "mal".

Por ora, Fai Chen estava sentado em um banco de madeira próximo a sua cabana florestal. Suas mãos estavam trêmulas em questão do frio da noite de inverno, mas não era apenas esse o motivo de tal reação e o que o deixava tão ansioso.

Era o aroma. O aroma da natureza.

Ocasionalmente, Fai Chen se sentia seguro e conseguia por meros minutos, retirar as vendas e observar o ambiente ao seu redor e sempre, quando conseguia um tempo a mais, sentia o doce aroma da floresta. Um cheiro que somente os homens de coração puro poderiam sentir. A fragrância da vida.

O jovem melancólico, se levanta do banco, colocando novamente sua venda nos olhos e partindo para uma nova caçada; respirava pesado e em certo ponto, um suspiro sufocante poderia ser escutado. Fai Chen pensava nas almas assustadas que encontraria essa noite e como, ao final da mesma, voltaria para sua cabana devastado e tentando, o máximo possível, lutar contra sua vontade de acabar uma vez por todas com esse sentimento perturbador em seu peito.

O sentimento de lutar pela vida e pelos outros.

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Observações:

- Caos primordial ou ovo primordial: de acordo com a mitologia chinesa, é o começo de tudo e após se repartir, os mitos sobre o céu e a terra começam a surgir.

- Yang e Yin: são os dois princípios da mitologia chinesa.

- Cultivar/Cultivo/Cultivação: no Taoísmo, o ato de Cultivar é chamado de Xiulian ("Xiu Dao"), que significa: Xiu - melhorar, cultivar; e Dao - compreender todos os elementos de seu interior. Portanto, Xiu Dao, pode ser traduzido como "rever a sua própria imortalidade", melhorando sua saúde.

- Cultivadores: alguém que atribui a forma de viver do Taoísmo, de acordo com o método de cultivo. São pessoas que estudam as artes relacionadas a misticidade e marciais, tornando-se no decorrer do tempo, poderoso.

- Cultivadores demoníacos/Cultivadores do lado Yin: alguém que deixa-se levar para o lado Yin, ou seja, o lado escuro. Possibilitando o controle de corpos já falecidos, espíritos e cadáveres.

- Yaomo ou Yaoguai: significa "demônio". Os yaomos são espíritos que tendem a alcançar a imortalidade; nem todos são considerados como demônios, pois possuem origens bastante incomuns. Na mitologia chinesa, o "inferno chinês" (Diyu) e o local onde há mais raças demoníacas. Há uma semelhança entre o yaomo com o demônio japonês oni. 

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