Barbie (31/07/2023)

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Vi sábado junto com o Oppenheimer, mas só estou postando um comentário agora por ter sido um filme que levei mais tempo para digerir.

Sim, Barbie tem mais conteúdo sociopolítico que Oppenheimer, embora pareça o contrário ao analisar superficialmente os 2 filmes. Aliás, o contexto que cerca Barbie e seu lançamento também gera mais discussão, o que inclusive condiz com a proposta metalinguística que o filme tem.

Farei um apanhado de impressões com vários spoilers espalhados pelo texto.

"Barbie" é uma comédia de verniz infantil, mas que aborda diversos temas adultos. Há vários dilemas existencialistas que me fizeram lembrar discussões de aulas de Filosofia: o ser-para-a-morte de Heidegger (já que a consciência existencial da Barbie desperta justamente quando surge a perspectiva do fim, ao se conectar com os pensamentos de sua humana), a ideia de liberdade e existência em Sartre, passando pela ideia de vida autêntica sem ser definida pelos outros; e, claro, Simone de Beauvoir e o existencialismo por uma perspectiva feminista, refletindo sobre como e o que é ser mulher.

Trabalhar essas discussões, para mim, é o maior acerto do roteiro. Muitas vezes ele faz isso por diálogos muito explícitos e expositivos, mas que se encaixaram bem à proposta. Há também sutilezas e sacadas que não ficam tão nítidas assim (comentarei logo mais), o que acaba gerando um equilíbrio.

O humor acerta e erra. As piadas lembram sketches de humor, e justamente por essa semelhança funcionam melhor quando acabam rápido e passam a outra situação. Quando elas se estendem, a comédia fica constrangedora e cria cenas com a impressão de poderem ser cortadas, mesmo o filme sendo curto – como a batalha dos Kens e o grupo de executivos da Mattel que perde seu propósito depois da primeira aparição.

As melhores piadas surgem pela metade, quando o patriarcado transforma os Kens em heterotops – como o "Mojo Dojo Casa House", que já virou meme.

Em termos visuais e de construção de mundo, a Barbieland é muito bacana e tem várias boas sacadas. Aliás, o filme me surpreendeu ao ter poucas cenas no mundo real e já retornar ao mundo da Barbie em seguida – os trailers davam a entender que gastaria mais tempo com a Barbie tentando se adaptar à nossa realidade, o que foi bom não ter acontecido e fugiu de outras histórias similares.

De início, aparentes furos como as viagens entre a Barbieland e a Terra não terem explicação lógica me incomodaram – mas entendi que esse aspecto, como outros, também imita o funcionamento das brincadeiras de criança. Ponto positivo o roteiro igualmente usar modelos controversos ou pouco conhecidos de Barbies para inserir comentários ou piadas.

Os pontos mais interessantes da história foram Barbieland e mundo real funcionarem como opostos um do outro, permitindo visualizar e criticar o patriarcado através dos olhos dos bonecos principais.

Tanto a Barbie quanto Ken também passam por arcos existencialistas muito interessantes, tornando-se seres mais autênticos: ela deixa de sofrer por não corresponder às expectativas de servir como modelo às meninas, tornando-se verdadeiramente humana em conceito e fato ao terminar como pessoa de carne e osso em nosso mundo. Ele, abandona a perspectiva de só existir para estar com a Barbie e torna-se autossuficiente a partir de quem é – uma trajetória que dialoga com as mulheres de nosso mundo ao não mais existirem como "apêndices" de namorados ou maridos. No geral, os dois personagens criam seus próprios sentidos e deixam de atrelar seus significados a outros.

No entanto, o roteiro desliza em outros pontos – seja para tentar antagonizar menos o público que não simpatiza com o feminismo, ou simplesmente para forçar certas piadas que escapam da proposta central. Os executivos da Mattel parecem ora idealistas, ora movidos apenas por lucros. Se o mundo real é predominantemente patriarcal, não seria suficiente deixarem os novos bonecos Ken serem vendidos e não precisarem reverter as coisas na Barbieland, para o fluxo de caixa continuar? Ou a necessidade de representatividade – cobrada pelos consumidores – barraria isso? Até que ponto a representatividade é tratada positivamente pelo filme, ou se torna ambígua como na personagem da filha adolescente, que parece uma caricatura do Twitter e invoca humor ao exagerar na sua militância?

O filme é um produto em que a própria Mattel tira sarro de si mesma, reconhecendo o uso da representatividade no meio corporativo apenas para gerar lucros, sendo que o próprio filme também pode ser enxergado dessa maneira. Seja na Barbieland ou no mundo real, as posições de poder e realização, segundo o roteiro, são apenas uma questão de gênero. Não há um recorte econômico das relações, tampouco sobre como esse aspecto acaba se entrelaçando ao próprio patriarcado. No final, o conflito na Barbieland é resolvido de forma negociada, paliativa: aquela dimensão continua uma inversão da nossa, agora no quesito de homens serem admitidos paulatinamente na sociedade, com raridade em posições de mando mais efetivas.

Do lado de fora dos cinemas, o fator econômico continua pesando como nunca não só nas relações de gênero, mas sociais, e o capitalismo continua lucrando horrores em cima de um público que não suporta viver mais nele, mas que encontra como paliativo consumir produtos culturais que vendem uma crítica delimitada. Não que representatividade e o debate sobre gênero não sejam importantes, mas nunca se pode perder o foco de como acabam apropriados pela lógica de consumo – e deveriam ir muito além dela.

Aliás, ainda dentro dessas reflexões e provocações...

Como parte dessa jogada de ressignificar a Barbie e manter a força da marca nos novos tempos, Warner e Mattel também investiram pesadamente no marketing do filme. Muita gente foi ao cinema sem saber o que esperar, acredito, e disso têm surgido diversas vertentes de discussão.

Há um pânico moral alegando que o filme "desvirtua a família". Parte dessa comoção seria por ele conter "ideologia de gênero" e normalizar pessoas LGBTQIA+ (que crime, não é?). Acontece que o filme mal aborda esses temas, a não ser por uma das Barbies ser uma mulher trans – algo que não é mencionado explicitamente e muita gente sequer deve ter percebido.

Os "calvos do Campari" alegam que o filme estimula misandria (ódio aos homens). Além de a própria crítica feminista do filme ter limites e até ser contradita pelo roteiro em determinados pontos, a abordagem me pareceu válida e ainda funcionou muito bem dentro do humor. Novamente na ideia de oposição entre os 2 mundos, muitas das características negativas dos personagens masculinos são as mesmas projetadas pelos homens sobre as mulheres ao longo do tempo: já não ouvimos tantas piadas sobre mulheres serem burras? Ou as resumirmos apenas a aparência e futilidade? Me parece um bom estímulo à autocrítica.

Por fim, sobre a classificação indicativa 12 anos... Há piadas e insinuações sexuais no filme, mas poucas. Acho que a grande perda do público mais jovem é, na verdade, ele estar sujeito a "boiar" frente à maioria dos diálogos e situações. Muita da força do filme vem da acidez quanto a relacionamentos, oportunidades de trabalho, julgamentos sociais e frustração da vida adulta que acabam influenciados pelas dinâmicas de gênero; e o roteiro não para desenvolver a maioria dessas tiradas ao jogá-las uma atrás da outra sobre o espectador (daí, como disse, nem tudo no filme ser tão expositivo). A criança e pré-adolescente ainda não viveram a maior parte dessas experiências, transformando tudo num falatório desinteressante a quem se vestiu de rosa mais para acompanhar a Barbie dirigindo seu carrinho pela Barbieland do que outra coisa.

Como a bilheteria ainda é mais importante que crianças confusas perdendo a paciência e ligando seus celulares no meio do filme, é provável que daqui a alguns anos muitas delas o revisitem para assimilarem os vários subtextos que perderam.

E, querendo ou não, este é um filme que ainda renderá muitas discussões até lá.

GOLDFIELD - Nerdices e análisesWhere stories live. Discover now