Robocop de José Padilha (27/02/2014)

12 0 0
                                    

Fui assistir ontem, e agora vai meu comentário mais detalhado:

O Robocop original é um dos filmes mais curiosos e interessantes dos anos 1980. Por trás de um título esquisito e uma proposta aparentemente infantil, está uma trama adulta, extremamente violenta (muita gente ficou traumatizada com o assassinato do Murphy) e uma ficção científica madura, que constrói seu universo muito bem e tem uma crítica impecável ao momento em que o filme foi feito: os EUA dos anos 1980, na chamada "Era Reagan".

O que faz a crítica do primeiro Robocop ser tão boa é a acidez. Essa é uma marca registrada do diretor Paul Verhoven, mas que foi sabiamente continuada nas continuações, Robocop 2 e 3, que em parte só não fracassam totalmente devido a essa aura do primeiro filme ter sido mantida.

Nos Robocops antigos, a acidez da crítica está pautada na auto-sátira. Os roteiros nos apresentam uma distopia com claros traços de absurdo, retratados com ironia e sarcasmo, mas que dentro do clima do filme, ganham verossimilhança. Assim, achamos perfeitamente plausíveis os desmandos da corporação OCP (crítica às políticas neoliberais de Ronald Reagan) para transformar Detroit numa cidade privatizada usando como tática um crescimento desenfreado da violência para que a população recorra a ela, uma estação espacial com canhão laser usado para matar ex-presidentes dos EUA (referência ao projeto "Guerra nas Estrelas", também de Reagan, um blefe que jamais saiu do papel e ajudou estrategicamente os EUA a ganharem a Guerra Fria), um alarme de carro que eletrocuta até a morte um ladrão ou um protetor solar fator 5000 que deixa a pessoa azul como um Avatar para proteger dos raios solares num mundo em que não há mais camada de ozônio.

São nuances absurdas, dignas de um pastiche ou comédia de fundo sci-fi, mas que dentro dos Robocops antigos soam perfeitamente naturais àquele universo. A obra de Verhoven e as continuações, mesmo em menor escala, usam a auto-sátira de uma maneira brilhante para projetar, no futuro, críticas ao próprio mundo da época.

E é isso que falta ao novo Robocop de José Padilha.

Usando termos de química, o filme é muito mais básico ao invés de ácido. Uso o primeiro termo num duplo sentido: a história básica do Robocop está lá: policial idealista e devotado ferido covardemente por bandidos é convertido num policial cibernético para sobreviver e ao mesmo tempo encher de dinheiro os bolsos de sua empresa criadora. Ou seja, nós reconhecemos a "armadura" desse Robocop - mas, tal qual a tinta preta passada sobre ela no filme, o ar é outro. O tom é outro.

Faltou o sarcasmo, a acidez da primeira trilogia nesse remake. O universo do Robocop de Padilha se leva a sério demais - o principal elemento do Robocop original, a auto-sátira, e que a mim era o mais atrativo, não estando presente. Uma pena isso acontecer, e fico acreditando ser por conta de pressões dos produtores, já que em seus filmes passados (Tropa de Elite 1 e 2), Padilha usou o recurso da ironia muito bem, com o trunfo até de pautá-la em nuances reais ao invés de fictícias, como o treinamento do BOPE. Cenas icônicas como o recruta obrigado a segurar uma granada sem pino para não dormir ou as próprias frases de efeito do Capitão Nascimento davam o tom do filme. E eu queria ter visto isso nesse novo Robocop.

Não que o filme não tenha pontos positivos. Não são poucos:

- O relacionamento de Alex Murphy com a esposa e o filho foram muito melhor trabalhados nesse remake, algo em que a trilogia original deveu bastante.
- A crítica ao imperialismo dos EUA e seu assédio aos países árabes - bem corajosa e bem pensada.
- Samuel L. Jackson representando a típica mídia de consenso atual e fazendo um cosplay estupendo de Datena ou Rachel Sherazade, se existissem naquele universo - até mesmo na função de âncoras de jornal adotarem a função de júri e juiz, passando qualquer um de suspeito a culpado.
- Treinamento e funcionamento do Robocop melhor detalhados, tornando a trama mais palpável.

Mas para aí. A ausência da sátira, do sarcasmo, tornam o filme muito "seco", sem sal, a marca do Robocop não está ali. Isso é piorado por um final confuso e corrido, que deixa buracos no roteiro e é até meio "off-character", alterando a personalidade de certos personagens do filme de maneira meio brusca (quem já assistiu deve saber do que estou falando - manifestem-se nos comentários).

Quando a campanha viral do filme começou a ser divulgada, um site fake da Omnicorp reunia cenas de crimes pelos EUA e falava que o país estava tomado pela violência, e que eles apresentariam a solução. Só que, nesses vídeos, as cenas não eram propriamente de crimes típicos, mas distúrbios civis, algo que me pareceu até passeatas, o que me empolgou na época: será que mostrariam a problemática de um policial robô indestrutível ser usado para conter protestos da população? Como o Robocop poderia ser usado como arma política, além de empresarial? O paralelo com os recentes acontecimentos no Brasil seria enorme, também.

Mas, infelizmente, o filme não seguiu nesse caminho. Ao invés de uma trama mais questionadora como essa, inseriram no roteiro uma "busca por vingança" de Alex Murphy em relação ao atentado que sofreu, imitando o filme original - com a diferença de que, naquele, fazia sentido, mas não no remake. O vilão que ordena o atentado a Murphy é totalmente apagado e irrelevante na história, os policiais corruptos envolvidos também, dando à tudo um ar de "subsubsubtrama" do que propriamente uma motivação marcante ao personagem. No original de 87, tínhamos vilões caricatos, mas que, dentro do mesmo contexto de auto-sátira do filme, criavam raiva no espectador pela maneira que eram retratados e suas maldades - incluindo o atentado a Murphy, muito mais violento, e único ponto em que acho que a censura reduzida prejudicou o remake.

Concluindo, o remake acerta em vários pontos, mas erra no principal: a aura do mundo distópico do Robocop dos anos 1980 não está ali. Ela poderia ter sido mantida e encaixada com críticas atualizadas ao mundo de hoje no roteiro, mantendo inclusive aquelas feitas ao imperialismo dos EUA e à mídia, mas que na minha visão perderam força com uma ambientação séria demais, fria demais para a fórmula que a mim fez Robocop no passado dar tão certo.

Porém, para o primeiro filme de José Padilha em Hollywood, é um promissor começo.  

GOLDFIELD - Nerdices e análisesWhere stories live. Discover now