Merlí (20/10/2018)

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Terminei de assistir ontem.

Há leves spoilers pulverizados pelo texto, mas que não prejudicam a experiência a quem não assistiu.

"Merlí" é uma série que emula a fórmula de outras obras famosas tratando da relação professor/aluno, como "Sociedade dos Poetas Mortos", "Mentes Perigosas" ou "Escritores da Liberdade" (só para mencionar algumas), mas tem seu toque particular em focar-se num professor de Filosofia, o Merlí do título, quando consegue aulas numa escola pública da Catalunha e acompanha uma turma do ensino médio do primeiro ao terceiro ano (cada um correspondendo a uma das três temporadas da série).

Caracterizado pelo gênio forte, ser debochado e teimoso, Merlí tem meios pouco ortodoxos de dar aula e até se relacionar ao restante dos professores da escola – mas, no decorrer da trama, estabelece-se como uma força transformada no lugar e influencia profundamente a vida de seus alunos ao se envolver com seus dilemas pessoais, estimulando-os a serem críticos e repensarem de outras formas as situações que enfrentam.

Cada episódio, desde o título até a trama, gira em torno de um filósofo específico que Merlí explica aos seus alunos nas aulas daquela semana. O repertório é bem rico: Sócrates, Platão, Aristóteles, os Estoicos, Santo Agostinho, Maquiavel, Hobbes, Descartes, Kant, Marx, Hannah Arendt, Foucault, e muitos outros. Quase sempre, os ensinamentos do filósofo em questão se relacionam a episódios da vida dos alunos (e, como método pedagógico, Merlí diversas vezes escolhe o filósofo da aula justamente a partir disso), que se inter-relacionam mostrando como tais conceitos de pensamento se inserem na vida cotidiana.

É uma série divertida, rica e que pode ser recomendada a diversos públicos. Primeiro, curiosos quanto a Filosofia, que possuem pouco repertório dentro do tema e querem um estímulo a pesquisar mais. As discussões de Merlí apresentam diversos pensadores ao público de maneira simples e despojada, constituindo boa base para aprofundamento de estudos.

Segundo, é uma ótima série para professores. Retrata de maneira fidedigna o cotidiano escolar, as dinâmicas entre professores (positivas e negativas – da formação de amizades a até situações de ciúme pelo cativar dos alunos), a relação entre professores e direção, os problemas da escola pública (nas devidas proporções, pode-se estabelecer muitos diálogos nesse quesito entre Catalunha e Brasil), as imposições e pressão dos supervisores de ensino sobre as escolas, dentre muitos outros temas frequentes na vida docente. Além disso, retrata de maneira intensa os vínculos entre professores e alunos, a arte do ensinar, como um professor é capaz de influenciar seus alunos pelo que diz e faz – enfim, como nessa profissão deixa-se uma marca nos estudantes que, pelo cansaço e falta de perspectivas, muitas vezes não é enxergada; mas está lá, e pensar em como deixá-la positiva faz ser uma série que, inclusive, anima e encoraja.

Terceiro, é indicada aos próprios alunos do ensino médio que possuem aulas de Filosofia e se interessam em revisar ou aprender mais sobre os filósofos do currículo enquanto também se entretêm. Merlí não é feita apenas de conversas em sala de aula: há romances, intrigas, comédia, drama – não deixa de ser, também, uma série escolar para adolescentes. Ser disponibilizada pela Netflix no Brasil é, inclusive, um incentivo a mais conhecimento e debates sobre Filosofia entre a juventude, vista a precarização frequente do ensino da matéria em escolas ou, mais recentemente, como tem sido frágil a permanência dela nos programas – e torçamos para que não desapareça de vez.

Louvável, igualmente, como Merlí não foge dos tabus e aborda diversos temas polêmicos de maneira construtiva – inclusive questões de gênero, a partir da inclusão de Judith Butler entre os filósofos abordados num episódio focado numa professora transgênera.

A série, claro, não é perfeita. Particularmente, esperava um pouco mais de aprofundamento nas exposições de Merlí sobre os filósofos – geralmente se aborda um, ou no máximo dois aspectos de cada um. Pode ser, sim, implicância minha como professor, já que a série, afinal, é feita para entreter e não ser vendida como material paradidático, mas alguns filósofos em particular sofreram com isso no roteiro, como Schopenhauer (que é explorado apenas em seu pessimismo, os criadores se esquecendo do que fala sobre a Arte – oportunidade perdida de abordá-la incluindo os dons dos personagens Marc para o teatro ou Berta para o desenho) e Nietzsche (trabalhado basicamente só na "morte de Deus", o roteiro deixando implícito haver uma sintonia particular desse filósofo com Merlí, mas que nunca é explicada). Por outro lado, isso estimula o espectador a pesquisar para descobrir mais.

Outro elo fraco da série é a segunda temporada. Depois de uma primeira temporada coesa e empolgante, temos episódios que não trabalham bem os conceitos dos filósofos abordados, personagens com tramas forçadas e sem rumo e, em particular, uma nova professora na escola que assume um papel de antagonista com um potencial arco dramático a ser desenvolvido – a série, inclusive, deixa várias pistas disso – só para ter um final abrupto e "sem pé nem cabeça", sua trama sequer sendo revisitada a partir daí.

Em compensação, a terceira e última temporada é a melhor de todas. Destaque para os episódios sobre Albert Camus e Martin Heidegger – este, a mim, melhor da série, e que, junto com o episódio final, conseguiram me levar às lágrimas.

Enfim, a série me foi uma grata surpresa. Inspiradora, inteligente e instigante, com certeza é uma produção que merece ser mais conhecida – tanto pelos especializados em Filosofia quanto pelos leigos.

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