Capítulo 1 - Na estação de Leningrado

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URSS, outubro de 1933


"Então isso é a Rússia", pensei, contemplando a infinidade de bétulas de troncos brancos e copas douradas que passavam correndo ao lado das janelas do meu trem.

É bem verdade que eu já tinha chegado à União Soviética havia algumas horas, quando o trem cruzou a fronteira com a Finlândia – pois meu navio aportara no porto de Helsinki – mas ainda não tinha assimilado por completo a situação. Sim, mesmo com gente falando russo ao meu redor o tempo inteiro. Simplesmente não parecia real. Por tanto tempo eu sonhara com aquela viagem, ela sempre tinha parecido um sonho irrealizável, todos os que me cercavam consideravam meio que uma fantasia delirante da minha cabecinha um tanto quanto exótica. E, de repente, após um turbilhão de eventos que nem eu tinha entendido muito bem, lá estava eu – no país gigantesco, no país comunista.

Tinham que me desculpar pela lerdeza em assimilar.

Eu me recostei na poltrona do trem que seguia para Leningrado, fingindo sentir a brisa que soprava as folhas lá fora, apesar da janela trancada. À medida que nos aproximávamos da cidade, os fragmentos amarelos iam cada vez mais alto e mais longe, o que revelava a intensidade aumentada do pé de vento. Ainda assim, ele não era nada comparado à ventania que sacudira minha vida nos últimos meses. Bom, a tempestade da minha vida, como aquela brisa progressiva, já vinha se anunciando havia alguns anos.

Tudo começou com os poemas de Laura Brandão.

Não, não é bem verdade: tudo provavelmente começou na minha infância, com meus pais de mente aberta, meu pai ferroviário, cujos amigos traziam-lhe panfletos de conteúdo político escandaloso, e minha mãe inteligente que me deixava lê-los e até explicava o que eu não entendia. E com as missas. Sim, as missas. Quando elas não eram em latim, e eu prestava atenção no padre, e ele estava lendo na Bíblia umas palavras de igualdade que não combinavam com aquele ouro todo lá na frente e com a rígida divisão entre os sacerdotes e os leigos.

Minha família era de uma composição original; muita fé em Deus, e também (talvez por isso mesmo?) olhos bem críticos para com a sociedade.

Por causa desse pensamento mais avançado, e porque uma renda extra seria útil, em vez de me arranjarem um marido mal eu virei moça, fui mandada para um liceu de normalistas. Abandonei Campinas para ir morar na capital do estado com a minha vó que, por uma distração própria dela, me deixava mais solta do que os meus pais.

Bom, em frente à escola das normalistas, havia um liceu masculino, e é óbvio que as grandes aventuras das normalistas eram uns encontrinhos com os rapazes do liceu. Com sorte, até saíam uns casamentos dessas brincadeiras. No meu caso não chegou a tanto, mas eu conheci Francisco, e é aí que entram os poemas da Laura Brandão, e minha vida começa a virar lentamente de pernas para o ar.

Francisco era quase um ano mais velho que eu, e deixou o liceu antes de eu terminar a escola de normalistas. No curto período em que convivemos, no entanto, nos dávamos muito bem. Eu admirava a paixão e dedicação com que ele encarava o comunismo, embora na época eu não levasse a ideologia muito a sério. Ele me achava inteligente, e me tratava de igual para igual, o que me fez ver nele um diferencial, já que a maioria dos moços adorava tutorear as garotas.

Eu logo me envolvi com as manifestações pelo voto feminino, e Francisco me estimulava. Ao saber que eu gostava de ler, e não exatamente os romances água-com-açúcar que havia na biblioteca do meu colégio, ele começou a me trazer (bem dizer, contrabandear) alguns livros. Conseguiu-me uma cópia do Manifesto Comunista, que achei interessante, mas o que me fisgou de verdade foram os poemas. Era como se Laura conversasse comigo, de mulher para mulher. Ela me disse, em uma de suas obras:

"Nada há mais digno de respeito que a independência na mulher que é pura".

E eu me tornei independente. Independente e ativa. Depois que Francisco concluiu o liceu, trocamos cartas esporádicas, principalmente discutindo sobre os ramos políticos da nação e do mundo, talvez tenhamos esgotado os carteiros quando ocorreu a 'revolução' de 1930. Mas eu não precisava mais dele como formador de opinião, já tinha meu próprio pensamento político, e meus próprios ícones.

Permaneci na capital paulista após terminar o colégio; nem meu pai, nem minha vó se opuseram. Eu dificilmente arranjaria emprego no campo, de qualquer forma; ainda estavam preocupados com os reflexos da crise do café; professoras primárias eram um luxo que se podia dispensar.

Em São Paulo, a vida era mais ativa, embora eu preferisse estar no centro de tudo, no Rio de Janeiro. Continuei a militar pelo voto feminino. Acompanhei de longe, com apreensão, quando minha querida Laura, e o marido Octávio – com quem eu não simpatizava tanto – foram deportados para a Alemanha após a revolução de 1930. Ouviam-se coisas estranhas sobre a Alemanha naquela época. Respirei aliviada quando soube que eles tinham conseguido escapar para a União Soviética.

E então a União Soviética, protetora dos meus heróis, virou terra mítica, terreno de sonho.

O resto aconteceu muito rapidamente. Filiei-me ao Partido Comunista. Para grande preocupação dos meus pais, mudei-me para o Rio de Janeiro. Votei na eleição de 1932, apesar de ambos os candidatos me parecerem meia-boca – votei porque eu podia votar, mulheres finalmente podiam, e eu tinha que experimentar o fruto da minha luta.

O gosto era tão bom que eu desejei mais lutas para saborear mais frutos. Comecei a participar do Comitê das Mulheres Trabalhadoras, batia cartão no Partido em toda reunião e mesmo quando não tinha nenhuma, estudei russo com um camarada que sabia, e incomodei tanto, mas tanto os dirigentes, que eu acho que eles acabaram me escolhendo para a comitiva que enviariam a Moscou para treinamento em 1933 só para se livrar de mim.

Providencialmente, o trem parou na estação, junto com a trilha de recordações.

Os motivos não importavam, os meios não importavam, o que importava era que eu estava ali, do outro lado do mundo, após três meses de viagem de navio, e para desespero da minha mãe.

Eu me levantei e olhei em volta na cabine; apenas estranhos. Seria de se esperar que o Partido fosse mandar a comitiva toda junta, mas não: era arriscado, não podíamos dar nas vistas do povinho do Getúlio. Eles estavam sempre farejando atrás de comunistas. Provavelmente eu e os colegas nos veríamos em Moscou, mas, para a viagem, fomos espalhados em navios diferentes, e trens distintos também.

Haveria um contato me esperando na estação Bielorrussa em Leningrado, era tudo que eu sabia.

Todos já haviam saído do trem quando eu peguei minha mala e desci para a plataforma. O vento estava mais forte do que nunca, mais frio do que nunca – especialmente para quem tinha acabado de chegar do Rio de Janeiro – e arrancou meu chapéu.

"Sim, isso é a Rússia... e ela acaba de me dar as boas-vindas", pensei, bem-humorada, enquanto corria atrás da boina, arrastando minha mala e tropeçando nela, enquanto tentava me desviar das pessoas.

Quando finalmente consegui apanhar o adereço fugitivo, uma voz tranquila chamou minha atenção, com uma frase:

– Maria Clara Linhares de Azevedo?

Apesar do sotaque carregado, foi possível reconhecer meu nome, e eu me endireitei rapidamente, encarando o dono da voz. O-ho. Se aquele era o meu contato em Leningrado, eu não tinha certeza se queria chegar a Moscou.

Engano meu sobre o pé de vento. Agora sim a Rússia estava me dando as boas vindas.

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