Capítulo 4 - Jantar com os Solinin

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As horas passaram rapidamente, enquanto percorríamos a cidade, e apesar do clima horrível e chuvoso de Leningrado, cujo frio se intensificava por seguirmos o passeio pela beira do Nevá, do Fontanka e de outros rios que cortavam a cidade, eu me diverti um bocado. 

A própria novidade do local já servia para despertar interesse; Leningrado era tão diferente do que eu conhecia de Campinas, São Paulo ou do Rio de Janeiro. Havia prédios imponentes e bonitos, e, de modo geral era interessante observar as pessoas, andando apressadas com semblantes absortos, um pouco ao modo do que eu tinha visto na sede do Komsomol. Cada um parecia conter dentro de si um amplo mundo particular que despertava minha curiosidade, mas que eles guardavam debaixo de sete chaves de desconfiança, e dificilmente me permitiriam acessar.

Pelo menos no mundinho de Pavel eu estava sendo introduzida. Rompida a desconfiança inicial, ele se mostrara uma pessoa bastante aberta, e respondia minhas perguntas – às vezes um pouco invasivas – sem receio. Fiquei sabendo que ele tinha dois irmãos mais novos, um menino de treze anos e uma menina de três, que ele gostava de belas-artes (eu não estava tão errada sobre ele ter cara de artista, então), e adorava música. Ao vir para a cidade, tivera esperança de se matricular em alguma escola de música, mas, no momento, precisavam mais de engenheiros, e ele ingressara no curso de formação de engenheiros de produção. Fofo saber que ele servia às necessidades do seu país, se não com muita satisfação – era o que transparecia – ao menos com resignação e paciência.

Eu também contei mais um pouco sobre mim, e quando caiu a noite, já nos tratávamos por Pasha e Masha. Achei muito engraçado esse meu apelido. Masha... Parecia até o feminino de macho. Claro que, para Pavel e os outros soviéticos, essa associação não faria sentido, mas eu tinha certeza que meus colegas do partido brasileiro iam rir do apelido se o descobrissem, a hora que resolvessem dar as caras. Para aquelas cabecinhas, eu tinha agido como um macho ao me voluntariar para o treinamento intensivo no estrangeiro, junto com eles. Quando eles iam aprender que lugar de mulher é na Revolução?

– Masha – Pavel me chamou – já está com fome?

Na verdade eu estava tão distraída com o passeio que nem tinha me tocado antes, mas não comera nada desde o café da manhã na pensão, além de um pedaço do sanduíche que meu amigo trouxera de casa para o próprio almoço, horas atrás.

Meu estômago respondeu antes que minha boca o fizesse, com um sonoro ronco.

– Tudo bem, a minha casa é aqui perto. Vamos jantar lá, e depois eu te levo de volta para a pensão – ele propôs.

Aceitei; sabia que não seria problema, pois tínhamos encontrado o irmão dele mais cedo, na saída da escola, e Pavel avisara ao menino que ia me ciceronear naquele dia. Na oportunidade, tinha combinado sobre o jantar. Eu não ia pegar nenhuma dona de casa desprevenida, o que costumeiramente as enfurece.

Deixando a avenida beira-rio, enveredamos por uma rua lateral, e por outra, mais estreita. Nessa segunda rua havia um bloco de edifícios, novos e bem mais sóbrios do que aqueles que eu vira no centro. Entrando em um dos edifícios, cruzamos o pátio interno em direção à ala oposta à entrada, e subimos três andares de uma escada estreita. Parando no patamar, Pavel abriu a primeira porta, atrás da qual se ouvia uma discussão exaltada, que parou tão logo entramos.

Duas mulheres que estavam no vestíbulo olharam para nós. Visível que elas eram as donas das vozes que tínhamos ouvido. Uma era de estatura média, compleição forte, e cabelos cor de palha. Certa semelhança nos traços me permitiu adivinhar que aquela era a mãe de Pavel. Ela segurava uma panela, que parecia ser o motivo da disputa. A outra mulher, mais jovem e mais baixinha, ergueu uma sobrancelha à minha entrada, disfarçando mal o interesse. Pavel cumprimentou primeiro a ela:

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora