Capítulo 53 - Camaradas ao Norte

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Os trens impediram nossa partida imediata para o Nordeste.

Não, não os horários dos trens, até porque não existia ferrovia que ligasse o Rio de Janeiro diretamente com Pernambuco, para onde iríamos de início, a fim de encontrarmos Silo e Caetano e nos atualizarmos a respeito da situação local. Para minha consternação, eu e Astrakhanov precisaríamos nos enfiar em um barco novamente.

O problema ferroviário se devia à suposta profissão de John Stuart. Se no Rio podíamos nos mesclar e desaparecer no meio dos milhões de pessoas que viviam na cidade, nas capitais nordestinas, bem menos populosas, a vida das pessoas ficava mais exposta, e era necessário cuidado redobrado com o disfarce.

Por isso, pleitearam uma colocação real para Stuart na Great Western Brazil Railway, a concessionária para a qual ele alegadamente já trabalhava. Ele não parecia muito confortável com o arranjo. Quem poderia culpá-lo? Trabalhar para uma empresa inglesa com ingleses de verdade quando ele estava tentando se passar por um deles representaria um sufoco diário. Ademais, tais companhias por vezes continham agentes do serviço secreto britânico disfarçados, o que tornaria duplamente comprometedora qualquer palavra dita em falso.

Por sorte, também tínhamos nossos aliados na estrutura da Western e, a despeito do currículo completamente falso do tenente, até o fim da semana ele recebeu pelo correio uma carta de admissão, e nós retornamos com nossas malas ao Porto que não esperávamos rever tão cedo.

– Maldita burocracia – reclamei para Astrakhanov, quando estávamos os dois sentados no convés, com expressão de criança posta de castigo.

Não fosse a necessidade de entregar os documentos para inspeção no aeroporto – o que era impensável, do ponto de vista da segurança da conspiração – e poderíamos ter conseguido um voo doméstico. Pelo menos chegaríamos rápido em Recife. Agora estávamos condenados a mais três dias no mar.

Astrakhanov encolheu os ombros.

– Fazer o quê – murmurou, voltando a mergulhar no livro sobre trens que tinha comprado na Inglaterra, e abandonado tão logo pisamos em terra firme.

Eu sabia que devia deixá-lo se preparar em paz, mas precisava desabafar com alguém, e ele era o único disponível, então voltei à carga:

– Francamente, achei muita sacanagem nos afastarem do centro da ação logo agora que a coisa vai começar a andar.

– Na verdade, eles estão nos mandando para o centro da ação – obstou Astrakhanov. – Segundo eu entendi, começarão no Nordeste os trabalhos – "os levantes", seu tom de voz esclarecia. Conversávamos em inglês, mas era melhor manter a fala um tanto cifrada, por via das dúvidas.

O olhar com que fuzilei Astrakhanov deixava claro que era para ele parar de me jogar a verdade na cara.

Eu queria me queixar, não ser contrariada.

– Mesmo assim – continuei, após um momento, ajeitando os braços e as pernas cruzadas. – Qual a intenção do General em me selecionar para a empreitada, e depois me jogar para longe? – Meus planos abortados de estudá-lo eram, provavelmente, uma das principais razões do meu aborrecimento. – Só faltava ele dizer "Vocês estão sobrando aqui, circulando, circulando"!

– Ele te selecionou porque te achou capacitada para a tarefa, e te remanejou pelo mesmo motivo, ponto – Astrakhanov retrucou, irritado. – Você devia estar contente. Se tivesse tido tempo de te conhecer melhor, ele talvez nem... – resmungou, mas sua voz morreu ao erguer os olhos e se deparar com minha expressão perturbada.

– Preferia estar perto da liderança. E se fizermos alguma trapalhada? – confessei meus receios, num sussurro.

– Vai dar tudo certo – Astrakhanov retrucou. Era um chavão e não garantia nada, mas era o melhor que ele podia me oferecer no momento. – Se nos prepararmos adequadamente – corrigiu-se, erguendo seu livro para mim um instante, e voltando a atacá-lo.

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