Capítulo 64 - Um Bando de Ícaros

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No dia do fechamento da ANL, eu podia ter sido a única a gritar na cara da Polícia, mas não fora a única a pensar que era a oportunidade perfeita para liderarmos uma resposta popular de grandes proporções.

Após sua passagem por Natal, a caravana de Sisson e Cabanas seguira para o interior do país acumulando sucessos, e estava em Manaus quando foi pega de surpresa pelo decreto proibitivo. Sem remédio, já que não podiam mais prosseguir com os eventos públicos, eles decidiram que, em vez de retornarem direto para o Rio, voltariam sobre os próprios passos, e, em encontros clandestinos com os núcleos locais do Partido Comunista e com os demais aliancistas que decidissem não se sujeitar ao encerramento imposto à organização, insuflariam a revolta.

Sisson, comunista que era, sabia por cima do planejamento para a Revolução, e que a coisa toda devia começar no Nordeste, segundo a linha adotada até a véspera. Achava conveniente, portanto, acendermos a chama agora que a pólvora acabara de ser remexida pelos comícios, o Manifesto, e a resposta de Getúlio. Foi o que disse aos camaradas de Natal. Eles se entusiasmaram e muito com a ideia, mas conservaram lucidez o bastante para entender que o Rio Grande do Norte não conseguiria embarcar sozinho numa empreitada dessa envergadura. Também não queriam fazer nada sem o aval do Comitê Central e do comando da equipe do Komintern, que ainda não adotara posição oficial sobre o ato presidencial.

Diante desse impasse, Sisson deixou o tenente João Cabanas em Natal e partiu para Pernambuco, a fim de conversar com Silo, Caetano e o núcleo de lá para coordenarmos uma operação conjunta ao menos nos dois estados, prometendo retornar com a resposta o mais depressa possível. Deve ter cruzado comigo e com Astrakhanov no caminho. O Partido em Natal, por sua vez, se comprometeu a acelerar a preparação: conseguir armas, intensificar o treinamento dos camaradas e a cooptação de simpatizantes, e permanecer a postos, no aguardo do sinal.

Nós estranhamos, é claro que estranhamos. Aquilo não harmonizava em nada com o que acabávamos de ouvir na reunião em Pernambuco. Mas eles tinham uma data, e ela era próxima demais para grandes questionamentos. De nossa parte, enviamos um telegrama urgente para o Rio e outro para Silo, e não ficamos aguardando resposta antes de mergulhar de cabeça nos preparativos. Afinal, se a autorização viesse, tínhamos menos de um mês para aprontar tudo.

– Deixem a arma sempre apontada para baixo quando não estiverem usando. E de preferência, não para os seus pés – frisei, com um olhar misto de irritação e ironia para o camarada descuidado.

Impressionante como minha voz carregava um tom idêntico ao de Bruntieva. Agora eu a entendia completamente. Não era fácil se impor como professora – de assuntos bélicos, ainda por cima – para um bando de homens, por mais que ela fosse fisicamente maior que a maioria deles. Você precisa parecer durona e inabalável, quase tão macho quanto eles, ou não te respeitam. Se fizer isso por muito tempo, acaba vestindo o personagem e esquecendo de despi-lo à noite.

Eu era nova na função, e ainda conseguia me suavizar ao pôr-do-sol.

– Camaradas, por hoje chega. Vão se lavar, depois faremos uma refeição, e estudaremos um pouco de estratégia antes de dormir. Quem precisar anotar, acho que a anfitriã arranja papel e lápis, mas é melhor que vocês aprendam tudo de cor. Sabem como é, papel sempre pode cair em mãos erradas. Camarada Tonico, pode me ajudar a guardar as armas?

Era dezessete de julho, dia seguinte à reunião com o Partido, e eu partira logo cedo para o campo, indo me internar numa fazendinha pertencente a um advogado aliado, incrustada entre dois latifúndios produtores de algodão. Seu exíguo tamanho bastava, porém, para conduzirmos os treinamentos militares com suficiente privacidade, especialmente porque os donos das fazendas vizinhas moravam em seus casarões na capital. Era um dos lugares que Tapajós vinha usando havia meses para seus cursos de explosivos. Na antevéspera, vários alunos novos tinham chegado, e hoje eu aparecera para reforçar o corpo discente. Era sexta-feira e Astrakhanov devia se juntar a nós logo após o trabalho, pois não teria nenhum turno naquele sábado.

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