Capítulo 44 - Chapéu Azul

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Um ruído de farfalhar me despertou. Meus olhos ainda embotados de sono divisaram um vulto alto e magro de regata ao meu lado.

Perto demais.

Jamais pensei que Astrakhanov ousaria subir na minha cama, especialmente depois daquele incidente desajeitado no navio. Soergui-me sobre um cotovelo, puxando as cobertas de modo a proteger-me até o pescoço, pronta a ralhar com ele, quando o vulto notou que eu tinha acordado e se virou para mim.

Mesmo na penumbra eu reconheceria aqueles olhos cinzentos.

Pavel?

Acordei de todo e meus olhos desanuviaram imediatamente. Sentei na cama e olhei ao redor, atordoada, dando com as paredes, que pareciam cobertas por uma camada de alguma coisa escura. Toquei na parede atrás de mim, sentindo um material felpudo de encontro à minha palma. Cobertores. Seria possível que... aqueles planos...

— Onde estamos? — eu sussurrei para Pavel.

— Como assim, onde estamos? — ele repetiu, rindo, como se estranhasse a minha pergunta. — No nosso apartamento. Onde mais estaríamos no meio da madrugada?

— ...no ...Rio de Janeiro... — eu balbuciei, piscando, ainda sem compreender.

— Quê?

— O Rio de Janeiro. A revolução. O navio. O tenente.

— Que tenente? — e a voz de Pavel ganhou uma nota incomodada. Olhei para ele novamente e percebi que seu rosto se crispara. Logo relaxou, porém. — Sua mente está confusa — ele adicionou, em tom gentil. — Deve ter tido um sonho bem bizarro.

— Põe bizarro nisso — desviando os olhos da figura levemente curvada dele, eu soltei as cobertas no colo, sentindo arrepiar toda a pele exposta pela inadequada camisola clara de verão, e percorri o ambiente mais uma vez com o olhar, em busca de elementos reconhecíveis. Era um quarto qualquer de família, com uma cômoda, algumas estantes, o violino em uma delas, sapatos em um canto... e um berço. Virei o rosto bruscamente para Pavel, sentindo meus próprios cabelos revoltos chicotearem-me a bochecha. — Temos filhos? — indaguei, assombrada.

Pavel riu, erguendo as sobrancelhas, aparentemente espantado pela pergunta inusitada. Mas como eu continuava a encará-lo com uma interrogação na face, estendeu o braço e arrumou parte dos meus cabelos atrás da minha orelha, enquanto respondia:

— Ainda não — ele disse, pacientemente. Então seus olhos encontraram os meus. — Mas estamos tentando — um sorriso malicioso levantou os cantos de seus lábios finos, enquanto ele encolhia os ombros.

Um suspiro profundo me agitou o peito, e os olhos cinzentos desceram dos meus para lá, detendo-se brevemente no caminho sobre minha boca entreaberta do choque. Pavel voou sobre ela sem demora, comprimindo-me os lábios quentes, enquanto seus braços rijos enroscavam-se firmemente em minha cintura. Minhas mãos subiram para os cabelos claros, afundando neles e repuxando-os e revirando-os sem piedade, enquanto a barba de outra tonalidade já andava a me fazer cócegas no colo. Cerrei os olhos ao me abandonar nos braços dele, sentindo-me segura e feliz.

E então os abri de novo, pois não paravam de bater na porta.

E pela cadência regular e metódica, só podia ser Astrakhanov.

— Ande logo, Anita — ele chamou, por fim, se impacientando após vinte batidas. — Temos que encontrar o Berger em uma hora.

— Já vou — resmunguei.

Mexi com a mão para afastar as cobertas, esquecendo que cobertas não havia. Que cobertas? Eu estava no Rio de Janeiro, em janeiro, e apesar da janela aberta, mal conseguia suportar minha própria pele e a camisola fina sobre ela. O quarto era bem outro: mais amplo, paredes salmão, cortinas floridas, um ar caseiro bem brasileiro, como tudo, aliás, na pensão em que tínhamos nos instalado até fazer contato com o pessoal do Komintern para conseguir um aparelho permanente. Que era o que deveria acontecer dentro de umas duas horas.

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