Capítulo 68 - Tribunal do Caráter

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A carta não vinha assinada, estava criptografada, mas num código que eu já lia com facilidade, e a pompa e a solenidade do linguajar denunciavam o dedo de Miranda.

A pergunta imediata foi por que ele estaria me escrevendo; afinal, o contato do Partido com o núcleo local era Santa. Eu era "dos deles". E pelo que se entrevia da verborragia do Secretário Geral, essa rivalidade estava longe de ser enterrada. A rixa dele e de Prestes subira até Moscou e ele acabara sendo posto "no seu devido lugar", o que o deixara magoadíssimo. Mas Miranda estava disposto a sublimar os "amargores pessoais" em prol do Bem Geral da Humanidade, e recorrera a mim pois precisava de auxílio para averiguar se todos os nossos camaradas guardavam a mesma disposição.

Bem, resumindo o falatório — eram cinco páginas em letra miúda — e cortando os rodeios, chegara aos ouvidos de Miranda a notícia de que Santa pretendia se casar, e ele queria que eu fizesse a prometida passar por uma mesa avaliadora.

Aquele procedimento me desagradava, mas eu não negava sua necessidade. Com os militantes chão-de-fábrica, a tolerância era maior, mas os romances da liderança soíam se submeter à aprovação dos pares, quando avançavam em seriedade. Provocadores se infiltravam aos baldes em nossas linhas desde a fundação do Partido, então era vital que pelo menos os camaradas em posse de informações privilegiadas, como Santa, se acautelassem em seus relacionamentos, para não prejudicarem a causa comum.

Independente de minha opinião pessoal, missão dada era missão cumprida. Enquanto minhas mãos ajeitavam a pouca desordem da casa, o cérebro especulava maneiras de montar aquele tribunal ad hoc de um jeito que Santa não desconfiasse. Estávamos evitando reuniões com muita gente, para tentar abafar as bandeiras dadas com o alarme falso. Além disso, eu proibira os camaradas de passar perto da minha casa, uma medida de controle de danos necessária após meu escândalo por causa do fechamento da ANL.

A sorte, porém, logo me sorriu. No dia seguinte, Dona Ermenegilda partiu numa excursão para Aparecida do Norte – da qual ela já vinha falando fazia um mês – e Dona Jurema correu com pinscher e tudo para o interior, ao ouvir que sua sobrinha tivera um parto prematuro.

Aproveitei o perímetro livre e convidei os colegas para um café no domingo, usando de pretexto meu aniversário, que fora por aqueles dias.

— Mulher, eu casaria com você de verdade por essa torta de frango. Ai!

O tapa foi dado com um mais de força que a necessária para afastar os dedos longos da forma, e as chamas de ódio em meu olhar poderiam assar a torta sozinhas, se ela já não estivesse pronta. Tentei controlá-las antes que Astrakhanov estranhasse a desproporção da reação. A campainha me ajudou, tocando bem na hora em que o tenente abria a boca para reclamar, e eu interpus um comando:

— Vá atender que eu ainda tenho que cobrir o bolo. Querido — adicionei, ao perceber o olhar de Zefinha sobre nós.

Ela viera mais cedo com Quatro e as crianças, para me ajudar com as comidas. Quatro, ignorando sumariamente meus protestos, fora buscar umas garrafas de cerveja. Zefinha, por sua vez, mal e mal conseguia arrumar a mesa. Tinha que parar o tempo todo para impedir que um de seus filhos mexesse onde não devia ou quebrasse alguma coisa — como as próprias cabeças.

Enquanto derramava a cobertura de chocolate no bolo, revisitei mentalmente os três filhinhos que um dia desejara ter com Pavel e apaguei dois deles.

Astrakhanov já voltava do portão, e a voz alta de seu acompanhante me fez desviar os olhos do porta-retratos que Zefinha lutava para arrancar das mãos de José, ameaçando quebrar-lhe todos os dedinhos.

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