Capítulo 80 - Dor

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A questão com a dor é que, para se livrar dela, o corpo está disposto a qualquer coisa. Nem sempre é uma escolha consciente — você nem precisa estar consciente para escolher. É quase um impulso. Um corpo acordado reage a muita dor com um desmaio — é uma mudança, não custa tentar, quem sabe o deixam em paz, quem sabe ela se vai... Seguindo a mesma lógica, um corpo inconsciente, submetido a pressão física semelhante, agarra-se à única alteração de condições à sua disposição: acorda.

Foi assim que as picadas na minha têmpora, por força da insistência, me trouxeram de volta para a luz.

A primeira coisa que distingui quando meus olhos entraram em foco após algumas piscadelas foi uma bolsa com um líquido escuro. Uma sonda saía dela, espiralando na minha direção.

Minha têmpora ardeu de novo e, já desperta, gemi. O som avocou um rosto jovem e bronzeado de óculos, que pairou atento por cima do meu. Então uma mão afastou esse rosto e o de Astrakhanov o substituiu, em tudo invertido, inclusive na palidez.

— Aplique uma anestesia nela! — ele gritou para o outro rosto, quando eu gemi novamente.

— Já disse, nós não temos — veio a resposta, e pude ver a tensão nos traços bronzeados. — Acabaram e ainda não recebemos mais.

— Então dê uma pílula para passar a dor, qualquer coisa, anda!...

E um fuzil entrou na cena, apontado para o médico — ou enfermeiro — por cima da minha cabeça.

— D-deixe-me terminar primeiro, não posso largar a costura no meio.

— Ah! — bufou Astrakhanov. — Tudo bem.

A voz do intimado tremia quando gritou a alguém que trouxesse um analgésico. A mão, para minha sorte, ele conseguiu manter firme e, finalizando meu último ponto, como ninguém aparecera com o medicamento, decidiu ir pegá-lo pessoalmente, antes que Astrakhanov se enfurecesse... mais.

O russo voltou ao meu campo de visão, então, com a expressão facial ainda transtornada. Ele não usava a camisa do uniforme, apenas a regata, que continha manchas de sangue. Suas mãos também estavam ensanguentadas, mas continuavam carregando o fuzil apontado para o chão.

— Como você está? — ele perguntou, com a voz rouca.

— Bem, eu acho — respondi, lentamente, alçando as mãos para a testa e logo me arrependendo da ideia estúpida de tocar a costura. Ai. Tomara que trouxessem a tal pílula logo. — Onde estamos?

— Natal.

A resposta me pareceu correta, porque era a cidade onde eu morava. Mesmo assim, alguma coisa soava errado. Como se a informação não batesse com um dado que fora obscurecido pelo meu período de inconsciência. Fechei os olhos por um ou dois minutos, forçando a memória, e então alcancei o pedaço temporariamente apagado.

— Nós vencemos? Na serra.

Astrakhanov deu de ombros.

— Não sei. Não. Resistimos por um tempo, depois fugimos — ele fez uma pausa, deixando-me digerir a amargura daquele primeiro recuo. Mas via-se que estava impaciente, então a pausa foi breve. — Eu precisava chegar aqui o quanto antes, você estava...

— Perdemos muitos dos nossos? — sussurrei. Astrakhanov engoliu um seco.

— Os que estavam na boleia do primeiro caminhão... depois disso não tenho certeza. Estava escuro e confuso. Acho que caíram outros, sim.

— Fomos perseguidos?

— Sinceramente, a hora que afundamos o pé no acelerador, eu nem olhei para trás — Astrakhanov deu de ombros. — Se nos seguiram, desistiram no meio do caminho. Chegou aqui só o nosso caminhão.

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