Capítulo 3 - O outro Camarada Ióssif

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Apesar das minhas resoluções antissentimentais da noite anterior, fiquei muito feliz quando Pavel apareceu na minha porta na manhã seguinte, conforme o combinado, a fim de me levar ao encontro do seu dirigente. Se não por nada, só o fato de ser uma cara conhecida já me punha mais à vontade; as outras moças do quarto de pensão, quando voltaram dos seus respectivos trabalhos, me ignoraram sumariamente, e uma delas até me encarou com certa dose de hostilidade.

Assim, quando meu contato chegou, eu já estava de posse dos meus documentos e da carta de recomendação do Partido, e o acompanhei prontamente. Como não éramos mais estranhos desde o dia anterior, tivemos chance de trocar mais algumas palavras no caminho.

- E no que você trabalhava, lá no seu país? - ele me perguntou, após explicar que tinha vindo de sua vila no campo com a família alguns anos atrás, quando a fome tornou a vida lá insustentável, a fim de conseguirem trabalho nas indústrias nascentes. - Isto é, se você trabalhava - adicionou, ao ponderar que muitas moças da minha idade apenas casavam e passavam a cuidar do lar.

- Trabalhava sim, eu era professora - respondi, lembrando-me de algumas crianças com carinho, e de outras com alívio por ter me livrado delas.

- E por que escolheu essa profissão?

Eu o encarei, pensando na questão pela primeira vez.

- Bom, porque não havia muitas outras disponíveis para uma garota por lá - encolhi os ombros. - E porque assim eu poderia ficar perto de livros.

- Você gosta tanto assim de ler? - ele adivinhou-perguntou. Confirmei com a cabeça, e Pavel questionou - E já consegue ler em russo?

- Não coisas muito complicadas, mas panfletos, poemas, obras mais simples eu leio bem - afirmei.

- Tenho que te emprestar uns livros - ele ofereceu, com um sorriso contido, que se alargou, provavelmente por ver meus olhos brilharem.

- E logo, porque não sei quanto tempo vou ficar em Leningrado - pedi.

- Já vamos descobrir isso - afirmou o rapaz, apontando para uma edificação logo em frente, na qual funcionava a sede da União da Juventude Comunista. Uma placa de madeira precária com a sigla "Komsomol" pintada em vermelho indicava que o prédio fora apenas adaptado para hospedar a organização.

O edifício de quatro andares e amplas janelas tinha toda a cara de pré-revolucionário e não combinava muito com a decoração sóbria do interior, as cadeiras de madeira dura, e nem com a cara das moças e moços atarefados que circulavam por ali, todos ostentando seus broches e lenços vermelhos, e ignorando completamente a nossa existência. Olhando para todo o lado e captando os resquícios imperiais na arquitetura, não pude impedir minha imaginação de divagar para tempos mais antigos e vislumbrar os fantasmas de príncipes e condessas em vestes opulentas, tagarelando em francês sobre os últimos espetáculos da moda, sobre os casos amorosos da Princesa N., ou o que quer que povoava suas vidas vazias. Pareciam mais alegres, mas bem menos úteis que meus companheiros compenetrados que se esbarravam por ali agora.

Uma nova voz grave interrompeu minhas divagações e apagou os quadros mentais que eu comparava. Também era tranquila, mas continha uma nota mais cheia de si, ausente na voz de Pavel. Eu voltei os olhos para o dono da voz.

Um homem alto, talvez mais alto que Pavel, estava de pé atrás de uma escrivaninha. Ele era bem maior, porém, forte, cujo trabalho burocrático tinha tornado até gordinho. Os cabelos eram escuros, mas os olhos espertos, cinzentos como os de meu novo amigo. Um início de rugas os cercava. Devia ter uns trinta e poucos anos. Só então eu reparei que tínhamos cruzado um par de enormes portas, adentrando um gabinete privado, ocupado por esse homem que nos dirigia a palavra e uma secretária, loura, bonita e discreta, cuja mesa estava de lado para nós, perto da janela.

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