Capítulo 19 - O atrasado

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Capítulo na terça? Bom, apesar de a história não ir mais até a Segunda Guerra, como o projeto inicial, ainda assim achei que DV merecia um capítulo extra em comemoração ao Dia da Vitória (mesmas iniciais, como o ferrugemverde me fez reparar), esse feriado tão importante para os soviéticos e para os russos.

Bem, aí está, espero que gostem do presentinho, e na sexta trago o Capítulo 20.

***


Dezembro quase findava, mas eu ainda me lembrava nitidamente do silêncio que reinara no auditório após as palavras do camarada inglês. Aquele silêncio saturado, abafado, cheio de bufos de quem está tentando segurar uma torrente de gargalhadas. Pode ter sido ilusão de ótica, mas acho que vi até os lábios de Tabanov se curvarem num sorriso fugaz.

Não é que não entendêssemos a seriedade da infração dele, mas havia um elemento cômico que não podia ser negado, e que ressaltou aos olhos do colega, quando ele teve que repetir as mesmas palavras diante de todos. Tenho certeza que a vergonha que passou foi suficiente para ele aprender a lição.

Quanto a nós na plateia, tentar segurar o riso fortaleceu mais os nossos músculos do abdômen do que semanas de exercícios físicos o teriam feito.

Obviamente aquele episódio encerrou a sessão. Se alguém tinha ficado por ser ouvido, creio eu que acabou recebendo clemência sem precisar da confissão. Não demoramos a ser absorvidos pelo turbilhão de estudos e atividades, e o incidente se enterrou no passado.

A essa altura do ano eu estava acostumada com as férias escolares se aproximando, o ritmo de trabalho diminuindo, e as atividades natalinas absorvendo as minhas energias e das outras professoras. Fazer cartões, montar presépios, contar para as crianças a origem do Natal. Bem, certamente que nada parecido aconteceria numa instituição de ensino para adultos, mas mesmo assim foi chocante quando os dias 24 e 25 de dezembro foram encarados como qualquer dia normal. Como assim, nada de Natal? Levantei a questão no Comitê de Celebrações. Ninguém segurou a risada, dessa vez. Alguém me explicou, com certo ar de condescendência, que o Natal fora até cancelado; desde 1929, era um dia normal de trabalho. Eu não queria mesmo movimentar o Comitê com essa finalidade, não era verdade? Ora, Camarada Liza, uma festa religiosa?! Tenha paciência.

Engoli calada meu desapontamento, e pensei em fazer uma visita ao seminarista da igreja de São Basílio na ocasião, se tivesse oportunidade.

Eu não poderia dizer, todavia, que dezembro de 1933 passou livre de eventos para mim, pois nesse mês chegou à ELI nosso colega Jaime, que tinha sido retido pela polícia, atrasando sua vinda, e – justamente por isso – vinha recheado de histórias.

Passando pelo corredor dos nossos dormitórios, certa noite, ouvi uma balbúrdia sem tamanho vindo do quarto de Silo e José Maria, quase numa reprodução do que tinha ocorrido no hotel Nacional. Havia mais vozes, porém, e todas falavam português, em meio a gargalhadas gostosas. Sorri comigo mesma, dirigindo-me ao meu quarto. De repente ouvi um grito uníssono:

– Anauê!

Mas o quê?!

Eu, que já estava com a mão na minha própria maçaneta, virei nos calcanhares e rumei para o quarto dos rapazes. Dessa vez não bati, e entrei direto, sobressaltando o palestrante, que estava de costas para a porta, e se virou de pronto.

Um rapaz desengonçado e orelhudo de cabelos negros e bochechas coradas fechou a boca e me encarou com ar inquisidor, pousando as mãos na cintura para recobrar a postura perdida pelo susto. Devolvi o olhar, e em seguida o desviei para inspecionar o resto do quarto. Silo, José Maria e Astrakhanov estavam sentados nas camas, os dois primeiros tentando recuperar o ar esvaído nas gargalhadas, e o terceiro com um sorriso bobo no rosto, divertindo-se com a reação dos seus alunos a sabe-se lá que miquices estivera fazendo o recém-chegado, apesar de não entender muito bem do que estavam rindo.

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora