Capítulo 50 - Novas Nordestinas

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Só faltava ele pegar uma régua para aperfeiçoar aquela risca.

Eu, apoiada no umbral, de braços cruzados, com a bolsa pendendo de um deles, observava com impaciência Astrakhanov terminar sua toilette. No espelho do vestíbulo, ele perscrutara o próprio terno em busca de algum grão de poeira ou fio de cabelo, e agora terminava de ajeitar o cabelo num penteado impecável. Isso porque tinha aposentado os óculos de John Stuart – decidira dizer que eram para descanso, pois usá-los o tempo inteiro lhe incomodava o dorso do nariz. Não fosse assim, ele ainda permaneceria um minuto ajeitando os óculos para deixá-los perfeitamente retos.

Eu e meus cabelos mal escovados não entendíamos esse perfeccionismo todo. E havia outras coisas que eu não entendia sobre Astrakhanov.

Não era a primeira vez que ele demonstrava interesse por mim. Mas convenhamos que carecia de lógica destilar veneno sobre Pavel, num despropositado acesso de ciúmes, ao mesmo tempo em que cantava loas de saudade de sua ex-noiva. Os comportamentos eram mutuamente excludentes.

Achei melhor enterrar o assunto, e Astrakhanov também não tocou mais nele. Assim que voltamos da praia, ele se encerrou em seu quarto e só tornei a vê-lo no dia seguinte, quando me deixou dormir um pouco além do usual e bateu na minha porta apenas às nove da manhã. Eu saí do quarto para encontrar a mesa do café repleta, e o tenente em nenhum lugar à vista. Minha impressão é que ele estava em parte envergonhado do seu comportamento, e tampouco entendia muito bem as próprias razões, ou o que se passava dentro dele.

Astrakhanov era bem sensível à presença feminina. Nossa proximidade forçada – do tipo que o obrigava a me carregar no colo durante uma viagem de táxi – devia estar bagunçando suas ideias.

Bem, eu não podia fazer nada; uma missão é uma missão, e como militar ele devia saber disso melhor que ninguém. Que se controlasse, então. E que se apressasse: já estávamos quase atrasados para o encontro com os camaradas, graças àquela arrumação digna de uma noiva.

– Vamos? – eu pedi, entediada.

Astrakhanov relanceou um olhar para o relógio, e se sobressaltou. A pontualidade ganhou do perfeccionismo, e ele correu para a porta, fechando-a atrás de nós e verificando duas vezes a fechadura, antes de acenar para que eu o seguisse escada abaixo.

Dirigimo-nos apressadamente para a casa de Gruber, onde seria a reunião. O apartamento dele era muito conveniente, pois era possível entrar direto pela garagem, sem ter que dar satisfações aos porteiros. Por isso, Berger costumava marcar as reuniões gerais lá. A daquela noite seria particularmente importante, a se julgar pelo bilhete que ele havia nos mandado.

Aparentemente haviam chegado instruções da Maison, e notícias dos colegas que estavam nos postos avançados no nordeste, que nos obrigariam a definir (ou redefinir) nossas estratégias – especialmente considerando que a combatida Lei de Segurança Nacional fora aprovada no começo do mês, tornando cada passo nosso ainda mais vigiado.

Tudo chegava, tudo mudava... e nada de Prestes.

Bom, precisaríamos ir nos virando sem ele, ou os acontecimentos caminhariam à nossa revelia.

Eu e Astrakhanov alcançamos a rua escura e silenciosa nos fundos do prédio de Gruber, e, em meio minuto, adentrávamos o apartamento. Erna nos abriu a porta. Já estavam quase todos lá, faltávamos apenas nós e Altobelli. Gruber, sentado na poltrona, ainda tinha ataduras nas mãos; as do rosto haviam sido removidas, deixando exposta a pele vermelha sobre a qual as bolhas começavam a secar. Berger andava de um lado para o outro, obviamente ansioso, e uma mulher morena de meia-idade, nariz comprido e olhos pequenos estava sentada com o cotovelo apoiado no braço do sofá e o queixo na mão, observando placidamente a agitação dele. Devia ser a Sra. Berger, que ainda não tínhamos encontrado pessoalmente.

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