Capítulo 6 - A caminho de Moscou

805 155 290
                                    

Eu não tive que lidar com as consequências de minha explosão sentimental no dia seguinte porque, por sorte, minha interação com Pavel foi bem rápida. Ele estava com pressa de chegar ao trabalho, então pegamos o bonde para o prédio do Komsomol, e no caminho ele me entregou um volume em capa dura com obras de Mikhail Bulgakov, recomendando brevemente que eu não saísse por aí exibindo o livro, pois nem todo mundo gostava daquele autor, e algumas pessoas poderiam se ofender. Ele mesmo não aprovava tudo o que Bulgakov escrevia, Pavel adiantou, mas era um autor engraçado e ele tinha visto que eu gostava de rir.

Por fim, prometemos nos escrever, peguei o endereço dele, me comprometendo a comunicar o meu em Moscou, tão logo o tivesse, e Pavel partiu. Troquei uma palavra com o recepcionista e deixei minha mala na recepção, à vista dele, enquanto me dirigia à sala de Ióssif Siberianov, para verificar como estavam os procedimentos para despachar-me para a capital.

A porta do gabinete dele estava entreaberta, e o Camarada Ióssif parecia atarefado, sentado e analisando alguns dos muitos papeis que cobriam sua escrivaninha. Não sei se eu pisei em algo que rangeu, mas ele olhou direto para mim. Tomei um sustinho, que se desfez quando ele me dirigiu um sorriso e uma saudação, novamente em português.

– Boas notícias, Camarada Linhares. Encontramos dois de seus colegas e já os despachamos ontem mesmo para Moscou, nos trens das quatro e das onze horas. Falta apenas o senhor... Jaime Ferreira – ele narrou, após consultar um papel – mas recebi autorização do comitê para embarcá-la ao meio dia de hoje, independentemente da ordem pré-estabelecida.

Ele não me deu maiores informações sobre o paradeiro dos meus compatriotas ou o que tinha causado o atraso, mas eu também não perguntei, pois, a princípio, os encontraria em Moscou e poderia escutar a narrativa de primeira mão. Reagi à informação com um aceno de cabeça e pedi instruções sobre como gastar as quase quatro horas que restavam antes da partida do meu trem.

– Bom, você tem que ir à delegacia registrar sua saída da cidade – Ióssif considerou, apoiando a caneta no queixo. – Seria ideal ir ao posto policial em que você se registrou, para poupar tempo em comunicações, informações às vezes se perdem na troca de memorandos entre os órgãos.

Concordei. Ióssif me examinou por mais um momento, e então pareceu notar alguma coisa. Abriu a gaveta de sua escrivaninha, tirando algo dali, que estendeu para mim, com o seguinte comentário:

– Isso deve agilizar sua recepção por lá. Engraçado que você ainda não tenha um.

Ele acabava de me entregar um broche da Juventude Comunista Internacional, do tipo que Pavel e a maioria dos jovens que passaram por mim no prédio usavam. Examinei por um momento a bandeirinha vermelha de metal, contendo um círculo dourado, e dentro dele uma estrela vermelha com as letras KIM em cirílico, sigla equivalente à UJC do meu Partido. Uma onda de orgulho me inundou e minha mão tremia um pouco ao prender o emblema no casaco.

Olhei de novo para o Camarada Siberianov, e sua expressão ao me observar era indecifrável, mas parecia ter um toque de ironia, ou humor. Bom, havia um toque de humor na atitude dele, de modo geral, que eu achava simpático, apesar de um pouco inadequado, talvez, a um líder komsomolets vinculado ao Partido.

Se bem que – me dei conta – eu não sabia exatamente qual era a função dele. A curiosidade, mal que tanto me afligia, atacou novamente, e antes que eu pudesse me segurar, vi-me perguntando qual o cargo dele no Komsomol.

– Sou o supervisor-geral dos jovens construtores dessa região da cidade – ele explicou, parecendo não ver inconveniente na pergunta, para meu alívio. – Por isso tanto trabalho – acrescentou, apontando a papelada sobre a mesa. – São muitos construtores e muitas construções, e todos os probleminhas vêm parar na minha mão. Se soubesse que a movimentação seria tanta, teria me candidatado para o setor de esportes – confessou, antes de soltar uma gargalhada que me fez perder a certeza sobre se ele estava falando sério.

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora