Capítulo 58 - O Santo Revolucionário

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Enquanto o valor de um ser humano for determinado pela quantidade de melanina em seu corpo ou pelo que ele carrega no meio das pernas, em vez de se observar suas atitudes práticas no dia a dia e a força moral que determina suas respostas aos diversos estímulos da vida, não estaremos preparados para a igualdade. Teremos apenas uma igualdade parcial e precária. Afinal, se ainda nos prendemos a julgamentos por critérios tão primitivos e despidos de lógica, como não seremos enganados pelas redes de sofismas em que os capitalistas enredam os trabalhadores, fazendo-os crer que seu estado de miséria é fruto de sua própria indolência, e que todos têm chance de enriquecer, desde que acordem cedo e trabalhem muito? Ora, todo trabalhador já não acorda cedo e trabalha muito? E para quê, se não para saquearem a maior parte da riqueza que gera, sob desculpas várias?

Mas não nos desviemos. A questão é que esse tipo de argumento dos patrões só pega o proletário desprevenido e o engoda porque no fundo de cada trabalhador há um explorador escondido, esperando sua oportunidade. Ele se revela quando o trabalhador oprime seu irmão de classe por causa da cor, do sexo ou até por ser de uma categoria profissional considerada inferior. Então, devemos nos despir do impulso de minimizar outro ser humano. Só quando não sobrar em nós nenhum desejo de se sobrepor, de ver o outro num nível abaixo do nosso, é que estaremos prontos para a verdadeira igualdade.

Rosa Luxemburgo Pindoramense.

– Muito bom o artigo, camarada – elogiou Torquato, o Camarada Quatro, logo após terminar a leitura. – Você se surpreenderia como tem gente nas nossas fileiras que precisa ouvir isso – ele disse, sacudindo um dos exemplares.

Eu tinha outro na mão, e relia com orgulho os parágrafos finais do editorial de nossa primeira publicação. Decidira abordar aquele assunto no jornal, mesmo que num único artigo, por conta do relato de Santa no dia da reunião. Não sei se minhas palavras causariam alguma mudança benéfica para ele e seus irmãos de cor, mas a julgar pelo sorriso de Quatro, que também era negro, pelo menos ele se sentira representado em suas lutas pessoais, o que já me deixava feliz.

– Gostei do pseudônimo, também – ele acrescentou.

– Escolhi para homenagear uma mártir da nossa causa – me vangloriei. – E o bom é que não dá nenhuma pista sobre a minha identidade aos enxeridos da polícia. "Rosa Luxemburgo Pindoramense" pode ser qualquer mulher comunista no país.

– Na verdade tem outra moça nas nossas fileiras que se chama Rosa Luxemburgo. É da União Feminina, de Mossoró, novinha, mas arretada. Filha do Camarada Bangu, conhece?

– Acho que já o encontrei uma vez... – murmurei. De fato, havia uma face bem vaga na minha cabeça, mas eu não lembrava onde a tinha visto.

– Então, ele é velhão na causa, e quando a menina nasceu, só dava essa polaca nos nossos jornais. Não sei se o padre deixou batizarem ela com esse nome, na verdade nem sei se ela é batizada.

– Puxa, será que eu vou causar algum problema para ela se continuar assinando assim? – balbuciei, a empolgação com minha própria sagacidade murchando de imediato.

– Não... Pode deixar, que ela não tem medo. Tem gente que chama ela de Amélia. Sabe como é, não se tem certeza do nome de ninguém. Até melhor assim, que se a polícia pergunta quem é Fulano ou Sicrano, a gente pode dizer de consciência tranquila "nunca nem vi".

E com uma piscadela para mim, ele alçou a voz, para pegar no pé de Astrakhanov, que estava junto a pia preparando chá.

– Tudo pela segurança, não é mesmo, Camarada Gringo? – provocou.

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