Capítulo 66 - Intervenção Militar

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Escrever costumava me ajudar a organizar os pensamentos, pôr a cabeça nos eixos. Não sei por quê. Já pensei que fosse o barulho das teclas da máquina batendo nos meus ouvidos e tornando o presente mais palpável. Isso contribuía, mas não devia ser a razão fundamental, pois escrever à mão produzia o mesmo efeito. Houve um tempo, quando eu ainda era normalista, em que — me envergonho um pouco disso — cheguei a arriscar uns versos. Nunca publiquei nada, claro; eu mesma via o quanto eram patéticos. Apenas apreciava a arte poética, e meu jeito de homenagear os mestres — e mestras — era tentar imitá-los. E os poemas também era um ótimo escape para sentimentos inconfessáveis.

O próprio ato de escrever me aliviava, no entanto, independente do conteúdo. Agora, por exemplo, eu estava batendo a matriz de um manifesto-denúncia dirigido à população, para alertá-los contra um pretenso "golpe contra a corrupção do governo getulista" que se tramava no seio do exército local. E, apesar da aridez do tema, os passarinhos pareciam cantar mais limpidamente naquela manhã, fazendo a segunda voz para a canção metálica da máquina.

Pelo menos a canção dos pássaros me chegava do lado de fora, já que a entrada do sol matinal estava vedada pelas pesadas cortinas. Para todos os efeitos, ainda estávamos dormindo. Exigência de Astrakhanov, claro. Ele lamentou não termos um rádio ou gramofone, para abafar inclusive o ruído da datilografia. Depois de pedir que eu "batesse mais baixo nas teclas", estava divagando sobre a quem deveria ou poderia solicitar um dispositivo sonoro para essas finalidades, enquanto andava de um lado para o outro do quarto, impaciente. "Eles não iam trazer alguém para montar uma estação do OMS pra nós no país?", lembrou-se, de repente. "Tch, e nem um transmissor comum temos".

— Vou lembrá-los disso na próxima carta — prometi, com metade da atenção presa em ponderar se "despautério" não seria uma palavra complicada demais para um texto popular.

— Podemos pedir diretamente ao Silo.

— Ele não é nosso superior hierárquico e duvido que ele tenha um para nos dar.

— Seria só para ele reforçar nossa solicitação — Astrakhanov encolheu os ombros, parando ao lado da minha escrivaninha em pose ligeiramente militar, mas com os polegares nos suportes para o cinto. Ergui os olhos para ele por um instante, e ele adicionou: — Se bem que ele tem coisas que nós não temos. Isso, por exemplo — e indicou com o queixo o mimeógrafo em cima da minha cama.

Ele não achava, realmente, que os superiores nos preteriam ao pessoal de Recife, nem gostaria que tivéssemos um mimeógrafo. Já estava nervoso pela presença temporária daquele ali, trazido por Silo, e queria me apressar para o devolvermos logo, mas sabia que seria inútil. Então exprimia sua irritação, receio e mau-humor destilando veneno em quem viesse à mente, sem atentar nos paradoxos que defendia, ou na concentração que atrapalhava.

— Não seria mais rápido se você escrevesse...

— À mão? E dar à Polícia material com a minha caligrafia?

— Ah, é.

Pausa.

— E se voc...

— Já viu se temos álcool? Se não tiver, precisa comprar. Não dá para imprimir nada sem — eu tornei, buscando um jeito de me livrar dele e evitar um conflito direto.

Astrakhanov se virou e deixou o quarto, pronto a bater na própria testa por ter esquecido detalhe tão importante. Gritei para que preparasse também um café, para disfarçar o cheiro do álcool. Perfeito, agora estaria livre dele por uma meia hora, o suficiente para fechar o texto.

...nosso distinto militar promete o que não pode cumprir. O próprio fracasso do governo de Getúlio, recebido em triunfo pelo povo há cinco anos por adentrar o palácio cavalgando nas costas da Mudança, devia servir de prova incontestável de que o problema não é quem está lá, mas quem está por trás, para quem eles governam. Pouco importa o fantoche que ocupe a linha de frente. Enquanto não se alterar o sistema, nos pontos vitais apontados pela Aliança Nacional Libertadora, qualquer promessa de melhora não passará de uma miragem no sertão, do tipo que engana as cabeças exaustas, castigadas pelo sol.

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