Capítulo 77 - Reestruturação

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Havia um motivo para raramente realizarmos nossas reuniões no bairro operário, apesar de a maioria dos nossos militantes morarem lá: a maioria dos nossos militantes morava lá. Todo mundo sabia disso, inclusive a polícia. Então, como a melhor forma de esconder algo é deixar essa coisa à vista, fixáramos nossos lugares habituais de encontro nos bairros nobres, bem debaixo do nariz dos policiais.

No momento, porém, não havia por que temer as forças de segurança pública. Seus integrantes estavam todos ou do nosso lado, ou encurralados na beira do Rio Potengi, enquanto eu descia tranquilamente as ruas do bairro das Rocas na companhia do Sargento Quintino, apreciando a paisagem natural. A arquitetura não era lá essas coisas — ninguém tinha poder aquisitivo para texturas nas paredes ou venezianas importadas. Porém, enchia os olhos notar que, diferente dos outros bairros onde eu havia passado no corre-corre desde o dia anterior, boa parte das portas ali estavam abertas, havia burburinho nas casas, e o entra-e-sai e vai-e-volta intensos provavam que vivia a nossa revolução.

Mesmo sem ser presença frequente nas Rocas — o que faria ali a esposa de um engenheiro? —, eu conhecia vários dos rostos pelos quais passava, inclusive o que se chocou contra o meu estômago quando cruzei o limiar da casa para onde nos dirigíamos.

— Tia Nita! Olha o que eu achei, olha?

No processo de recuperar o fôlego depois do "Uf!", agarrei os ombrinhos ossudos e encarei o sorrisão do menino, logo desviando o olhar para sua mão erguida com o que ele queria me mostrar.

E meus olhos se arregalaram.

— Querido... de-deixa a tia ver mais de perto? Zefinha! — gritei, mais histericamente do que pretendia. — Onde é que o Zezinho anda brincando?

Zefinha apareceu atrás de nós na porta da cozinha, com um lenço mal ajustado nos cabelos bagunçados e um par de ovos fresquinhos na mão.

— Dona Anita, quanto tempo! Seu Quintino. Podem entrar, já está quase to... Ai, minha nossa senhora! Filho, dá cá pra mãe, dá. Onde é que você conseguiu isso?

— Ele pegou na casa do vizinho — dedurou Torquato Filho, o primogênito, que comia uma papa amarela de uma tigela do outro lado mesa, com cara de sono.

— E onde estava o seu pai, que não viu isso? Quatrooo! Venha já aqui, homem! — rugiu a dona de casa.

O Camarada Quatro conjurou-se instantaneamente à porta que dava para o restante da casa, com um fuzil pendurado no ombro.

— Diga, minha vida — ele falou, num misto de ironia e bom humor.

— Eu não te pedi pra vigiar os meninos enquanto eu fazia a comida? Olha só o que encontrei na mão do teu filho!

E ela entregou para o marido um projétil de fuzil. Quatro apanhou o objeto com ar de surpresa, mas depois abriu um sorriso e fez um cafuné na cabeça crespa de Zezinho.

— E o que tem? — disse, para a mulher. — Ele é meu guerreirinho!

— O que tem? E se ele engole isso aí e explode as tripas do menino?

— Sossega, mulher, é uma cápsula vazia.

Zefinha fez menção de retrucar, mas pensou melhor, respirou bem fundo, e mudou o tom.

— Olha, se você quer que eu faça comida pros teus convidados, vai ter que olhar as crianças, que as duas coisas ao mesmo tempo eu não dou conta. Se fosse um dia normal, mandava eles irem brincar, mas com essa agitação na rua...

— Certo, certo — o marido apaziguou-a, segurando os filhos pelos ombros com um garras de águia. E então pareceu nos notar pela primeira vez. — Ah, que bom que vocês já chegaram, camaradas! Querem fazer o favor de passar à sala? A cozinha aqui é meio apertada e Zefinha vai precisar de todo o espaço pra cozinhar. Além disso, quase todo mundo já chegou, só estamos esperando o Santa e... Ah, olha eles aí!

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