Capítulo 9 - A Escola Leninista Internacional

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Não devia faltar muito para o dia raiar quando chegamos ao nosso destino, apesar do cinturão cinzento que anunciava a aurora ainda não ser visível no horizonte. Eu, Silo e José Maria descemos do baú do veículo, atividade em que fui auxiliada pelo homem que o Camarada Tabanov chamara de Tenente Astrakhanov, e o furgão seguiu viagem, dirigido pelo outro militar e sumindo na distância.

Estávamos em frente a um prédio de dois andares de estilo antigo e cor indefinida àquela hora da noite, com várias janelas grandes interrompendo sua fachada. Astrakhanov pigarreou para chamar nossa atenção, e nós três olhamos para cima, onde se situava seu rosto. Pela primeira vez observei-o direito, o quanto dava à luz noturna: era jovem e magro, embora não tanto quanto Pavel; não era possível discernir a cor dos olhos pequenos, mas os traços do rosto eram agudos, o sobrolho carregado, e os cabelos curtos, claros. Ao perceber que tinha nossa atenção, ele discorreu:

– O Camarada Tabanov é o Supervisor Geral do programa de treinamento de estrangeiros. Ele representa o Partido e a Internacional, mas não estará presente acompanhando pessoalmente o seu treinamento, apenas analisará os relatórios periódicos que lhe serão enviados. Se necessitarem de alguma coisa, tiverem alguma dúvida ou requisição, deverão se reportar a mim – explicou. – Sou o representante designado do Exército Vermelho para acompanhar essa turma. Vocês terão outros oficiais militares como tutores, mas eu estarei presente durante todo o programa, num contato mais direto com vocês e seus colegas, avaliando os respectivos progressos. Inclusive também residirei neste prédio. Falando no assunto, é melhor subirmos, para que vocês possam dormir um par de horas antes que soe a campainha matinal.

Novamente ele partiu na nossa frente, abrindo a porta vermelha e subindo para o segundo andar. Do lado esquerdo do patamar havia duas aberturas, e nós entramos na primeira. Um corredor médio forrado com um tapete marrom surgiu diante de nossos olhos, quando o tenente ligou a eletricidade. Havia três pares de portas de cada lado, e uma ao fim do corredor, para a qual nosso guia apontou.

– Aquela é minha sala. Já sabem onde me encontrar, se precisarem. Agora, senhorita Linhares, você fica aqui – ele me disse, indicando a porta do meio do lado direito – e os senhores Meireles e Souza – ele conferiu algumas etiquetas coladas nas portas – aqui – disse, por fim, apontando para a porta mais próxima do aposento dele mesmo. Vocês pretendem ficar com os nomes propostos na ficha-modelo, ou gostarão de criar seu próprio pseudônimo? – perguntou.

– Para mim Elizavieta Shedritcheva está bom – eu disse, e ele pegou uma caneta do bolso e grafou esse nome na porta do meu dormitório, abaixo de dois outros.

– Eu gostaria de alterar o meu nome – José Maria falou, em voz baixa.

– Qual o problema com Serguei Popov – perguntou o tenente, espantado, e eu coloquei a mão na frente da boca para disfarçar o sorriso, enquanto Silo claramente mordia as bochechas para conter uma gargalhada. José Maria corou; pelo jeito preferia que o nome não tivesse sido repetido em voz alta.

– Apenas... não se adequa à minha personalidade – ele justificou, fuzilando Silo com o canto do olho.

– Bom, certo. Como quer se chamar, então?

– Qualquer coisa, Ivan Ivanov, pode ser.

– Já temos um Ivan aqui na turma.

– Tem que ser nome russo? – José Maria perguntou então, agastado. – Minha língua já deu um nó tentando pronunciar o nome dela – e apontou para mim. Astrakhanov olhou com ar inexpressivo de um para o outro dos nossos rostos.

– Bem, não... Não precisa – respondeu, por fim.

– Então me chama de Felício.

– E muda o meu para José... José Mendoza – pediu Silo, aproveitando a oportunidade, e entregando a Astrakhanov o passaporte falso em nome de Miguel Borges, que utilizara na viagem, para não deixar rastros.

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