Capítulo 42 - Naturalização

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Não nos exigiram mais demonstrações públicas de afeto nos cinco dias que levamos para chegar em Londres. Eu e Astrakhanov passávamos quase o tempo todo sentados em uma das salas públicas, lendo, jogando xadrez, nos ocupando com discrição. Um ou outro velhinho chegava para dar conselhos de relacionamento; os recebíamos com uma simpatia não muito convidativa, e logo nos deixavam em paz.

Eu aproveitei o período para ler o livro "Nós", que pegara emprestado com Pavel havia tanto tempo e nem tinha conseguido abrir, graças à quantidade de tarefas que nos passavam na ELI. Provavelmente deveria tê-lo devolvido, mas no meio da confusão, nem lembrei. Agora me servia de lembrança. Na folha de rosto, abaixo do título, eu pregara com um clipe a nossa foto, tirada na feira, e a revisitava com frequência.

Aos poucos, consegui transformar a melancolia e a saudade em determinação, forçando-me a comprar a fantasia elaborada sobre a ponte e me convencer de que, tão logo terminasse minha missão, poderia voltar para ele. E a ideia de meus filhos e sobrinhos brincando juntos – ambos com direitos e igualdade em suas terras natais – era acalentada diariamente, ao acordar, como minha cantilena motivacional.

Chegamos a Londres no dia vinte e três, e nos separamos disfarçadamente do grupo que desembarcou do cruzeiro para uma curta excursão na cidade. Aproveitamos a correria por presentes de Natal de última hora para percorrer as lojas despercebidos no meio da multidão e comprar roupas que nos possibilitassem passar por ingleses legítimos – ou o mais legítimos que nossas aparências tipicamente estrangeiras permitiam.

Londres também estava coberta de neve. Para nós, isso foi providencial. A sede do Escritório de Ligações Internacionais do Komintern, mais conhecido por sua sigla em russo "OMS", ficava num bairro residencial ocupado por pessoas de classe média, que estavam enfurnadas em suas casas, e não havia ninguém nas ruas para observar-nos percorrê-las, com nossos trajes soviéticos de aspecto altamente suspeito, carregando sacolas. Astrakhanov carregando sacolas, aliás. "Eu sou o homem", ele disse, categoricamente, levantando-as acima do meu alcance, quando tentei pegar uma.

Perguntei-me por que o Komintern tinha se instalado num local tão burguês, quando a maioria dos nossos correligionários moravam em bairros pobres, como o Soho ou os distritos operários. Repeti a pergunta em voz alta, e Astrakhanov meditou na questão por um instante.

– Acho que é a frequência da polícia – ele opinou, por fim. Fiz cara de quem não tinha entendido direito. Astrakhanov explicou – Ela visita muito mais os bairros pobres, enquanto que desse pessoal aqui – e ele indicou com o queixo os sobrados alinhados de jardins cobertos de neve – nunca desconfiam.

Fazia sentido. Ficamos em silêncio pelo resto do caminho até um hotel pacato na transição entre dois bairros, que era o nosso destino. O frio de Londres, embora não fosse tão cortante quanto o frio russo, também era aflitivo, e intensamente úmido, e tampouco encorajava a abrir a boca.

Foi com alívio que adentramos o hotelzinho discreto e reparamos na lareira acesa na recepção, toda decorada em bege com detalhes de veludo vermelho, além dos enfeites natalinos. Eu me aproximei dela, e fiquei cuidando das malas, enquanto Astrakhanov se dirigia ao recepcionista e pedia para falar com o gerente. O recepcionista perguntou se devia registrar nossa entrada, mas Astrakhanov apenas repetiu o pedido, acrescentando que vinha a título pessoal, tratar da herança da tia-avó Charlotte.

O recepcionista franziu as sobrancelhas, mas acenou para um carregador de bagagens assumir o lugar dele, e foi buscar o gerente. Dali a pouco voltou, seguido por um inglês empertigado e alto, de nariz fino e terno claro, que dirigiu um olhar inquisitivo a Astrakhanov e a mim, ainda em nossos sobretudos soviéticos encharcados. Uma centelha faiscou em seu olhar discreto – algo parecido com reconhecimento – e ele se dirigiu polidamente a Astrakhanov:

Dias VermelhosOnde as histórias ganham vida. Descobre agora