Capítulo 57 - Em Cima das Palmeiras

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Após trancarmos a casa, eu e Astrakhanov seguimos o guarda civil pela trilha urbana, pontilhada de postes de iluminação, cujos topos brilhavam como vagalumes contra o céu azul profundo. Àquela hora já não havia mais arruído nas ruas, exceto por bares ainda abertos e frequentados, pelos quais passávamos aqui e ali. Seguimos por um caminho cheio de curvas e quebradas, que eu me esforcei para memorizar. Por saber que a pessoa que nos guiava era um agente da segurança pública, eu não tinha certeza se não era uma armadilha. Sim, ele acertara a senha, mas até aí podiam ter interceptado o verdadeiro contato, e...

Enfiando a mão na minha bolsa, apalpei o pequeno revólver que ali se ocultava — o que ficara na bagagem, escapando ao confisco de Lampião — respirei fundo, e consegui recobrar parcialmente a tranquilidade, rememorando os procedimentos de emergência. Qualquer coisa, atirar primeiro e perguntar depois. Ou melhor, atirar, correr, e não perguntar coisa nenhuma.

O caminho sinuoso, para minha grande surpresa, conduziu-nos a um lugar conhecido: a padaria de mais cedo. Aquele pedaço da rua era mal iluminado, mas consegui vislumbrar o letreiro com o nome "Palmeiras" e um desenho da respectiva árvore, identificando o estabelecimento.

Fiz menção de questionar o nosso guia, mas ele ainda fingia não nos conhecer, andando um tanto à frente, e Astrakhanov me impediu de abordá-lo. Paramos debaixo de um dos postes, e eu fiz menção de procurar algo na bolsa, simulando uma discussão com Astrakhanov, enquanto, de canto de olho, observávamos o Camarada Paiva bater na porta traseira da padaria em um padrão específico. A porta foi aberta e Paiva sumiu por ela. Esperamos um carroceiro que se aproximava ultrapassar o prédio, e nos dirigimos para lá também, repetindo o código de batidas que víramos Mário usar.

Logo, estávamos do lado de dentro, no sopé de uma escada estreita, e um homem de meia-idade portando uma vela nos conduziu para o andar superior. A escassa claridade amarelada da vela permitiu-me vislumbrar muitos sacos grandes, provavelmente de farinha, e meia dúzia de homens de aparências variadas, sentados ou recostados nos sacos, com idades entre vinte e quarenta anos.

Nosso guia apagou a vela antes que eu pudesse me deter no exame de seus rostos. Particularmente, achei a atitude incauta, porque se eu e Astrakhanov fôssemos infiltrados, poderíamos sacar nossas armas no escuro com tranquilidade, eliminar todos – naquele pequeno espaço, tiros aleatórios na altura do peito dariam conta do recado, independente de boa mira – e fugir sem pressa. Se abafássemos o som dos tiros, só no final da madrugada alguém descobriria os corpos, ao vir pegar farinha para o pão matinal, e a essa altura estaríamos longe, tendo dado cabo da conspiração comunista em Natal.

Com uma mente tão imaginativa, por sorte eu não trabalhava para a Polícia. Mas não fui a única a atinar com a inconveniência do apagar precipitado de nossa única luz.

– Camarada, acenda de novo, por favor – bronqueou uma voz um tanto enrouquecida. – Eu tenho coisa para ler.

O pedido foi atendido, e o portador da vela entregou-a a um homem de estatura média, pele morena avermelhada e traços indígenas, apesar do cabelo crespo. Descobri ser ele o autor da bronca, quando falou novamente:

– Boa noite, Camaradas. A reunião de hoje foi convocada em caráter extraordinário porque temos novidades muito importantes para nossa causa — ele introduziu o assunto, em voz baixa e tranquila, olhando em torno com seriedade. — Como sabem, eu fui ao Rio de Janeiro no mês passado, a chamado do Comitê Central, receber instruções de interesse da Revolução proletária brasileira, momento em que fui informado de que o Partido tem planos para um levante próximo, e que devíamos nos preparar, preparar para valer, com armas e tudo, para deflagrar esse levante tão logo sobrevenha o aval da diretoria do Partido.

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