Capítulo 41 - O Falso Casal

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União Soviética, dezembro de 1934 


Campânulas. Roxas e brancas. Repousavam sobre meus joelhos, e meus dedos petrificados as percorriam, apreciando a suavidade do toque vegetal.

Eu estava sentada na parte interior do navio, na sala de descanso perto do restaurante. Assistira Leningrado se distanciar, e agora que já não havia mais nada a ver lá fora, a não ser mar e escuridão, viera me refugiar em um recinto aquecido, tirar do corpo todo o frio acumulado ao longo do dia.

Minha mãe dizia que o frio entra nos ossos; ela teimava nessa ideia, por mais que eu tentasse explicar que o frio não tem como "entrar", já que ele nada é além de ausência de calor. Em qualquer caso, era possível "tirar" o frio dos ossos, com uma bebida quente e um descanso perto da lareira.

Do coração era mais difícil.

– Sinto muito – eu ouvi a voz de Astrakhanov, e ergui a cabeça. Ele tinha ido levar nossas malas para os aposentos designados, e acabava de se acomodar na outra ponta do divã, de onde me olhava com ar sério.

– Sente pelo quê? – questionei, encarando-o, confusa. Astrakhanov indicou as flores com o queixo.

– Esse arranjo se chama "noiva e noivo" – murmurou. Eu apenas suspirei, sem responder. Astrakhanov também suspirou, e pousou os olhos na mesinha de centro à nossa frente, apoiando o queixo nas mãos. – Você contou a ele?

Confirmei com a cabeça.

– Quase tudo – acrescentei. O tenente suspirou de novo.

– Temos que torcer para tudo dar certo nessa insurreição – disse – ou nossos pescoços estarão na mira por traição.

Voltei-me para ele, indignada.

– Pavel jamais revelaria meu segredo – protestei, com frieza. – Admira-me você dizer que amava Elvira, e, no entanto, não confia nela nem para o mais básico.

– Eu confio nela – Astrakhanov, respondeu, calmamente. – Não acho que me entregaria. Mas o ser humano é o ser humano, e você nunca sabe como ele pode reagir aos desdobramentos da vida.

E, levantando-se, ele se afastou. Segui-o com o olhar, até que ele deixou o ambiente, e voltei para minhas reflexões.

Era preciso admirar a resiliência de Astrakhanov. Se você o observasse, não veria qualquer sinal da crise do dia anterior, e provavelmente duvidaria que alguma crise sequer tivesse acontecido. Quisera eu ser assim. Emiti novo suspiro. Pelo menos haviam me arranjado um parceiro decente para o que tínhamos adiante, pois a coisa em si não ia ser nada fácil.

Não sabíamos todo o plano, mas apenas a parte que nos tocava. Ou antes, a parte que nos tocava por enquanto, até chegarmos ao Brasil e recebermos novas instruções. E era basicamente isso: chegar ao Brasil, e se estabelecer, sem ninguém desconfiar das nossas origens e intenções. Outras pessoas viriam, mas eu não sabia quantas, nem quais. O único que eu tinha certeza que estava voltando para o Brasil era o próprio Prestes.

Assim que sinalizei meu aceite ao convite de Prestes, fui chamada a mais uma reunião com ele e Tabanov. Foi com surpresa que, ao adentrar a sala, encontrei Astrakhanov e outro militar, um senhor de meia-idade que eu nunca tinha visto.

– Você sabia de tudo... Camarada Tenente? – eu sibilei, mal conseguindo manter o tom respeitoso e disfarçar minha indignação; afinal de contas, ele podia ter me prevenido.

Astrakhanov limitou-se a me lançar um olhar inexpressivo, e foi Prestes quem respondeu.

– O Tenente é uma colaboração do Exército Vermelho – explicou. – Nós o solicitamos por conhecer nossa língua e já ter tido contato com vários alunos brasileiros antes. Acreditamos que isso facilitaria sua adaptação. Acomode-se, Camarada Shedritcheva.

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